A apetência, e depois

Correia da Fonseca
Apetecer, apetecer, o que apetecia era comentar as palavras de dois sujeitos manifestamente ordinários e intolerantes que na passada segunda-feira apareceram nos noticiários da noite. Porém, isto de alinhavar comentários à TV e aos seus conteúdos não depende apenas das apetências de quem os escreve mas também de outros factores; e ainda bem que é assim, até para que uma coluna que quer ser de crítica não se transforme em depósito de lirismos ou de indignações pessoais. Para mais, nessa mesma segunda-feira o «Prós e Contras» de Fátima Campos Ferreira anunciava ir discorrer acerca do futuro deste nosso País, tema de óbvio interesse nacional, e por isso mandava o bom senso que estas duas colunas fossem reservadas para assunto de tamanha relevância. Era, pois, indispensável dominar o apetite de comentar as brutezas que haviam surgido no ecrã do televisor e falar de coisas apesar de tudo mais decentes, embora nem sempre tanto quanto seria desejável. Em verdade, a expectativa havia de mostrar-se decepcionante: o programa iria ficar muito longe do que poderia sonhar-se mesmo que em moderado sonho, sendo exclusivamente preenchido pelos saberes efectivos ou de supostos sábios com méritos de grau diverso, escolhidos a dedo cuidadoso. Tão cuidadoso que eram todos eles cidadãos que mandam ou opinam, naturalmente que mal ou bem, mas nenhum era com evidência representativo da imensa maioria que faz, com as suas próprias mãos ou o seu próprio engenho; que não manda produzir mas produz mesmo. Esta verificação não implica inevitável desdouro para os cinco convidados de Fátima: basta dizer que entre eles estavam o médico Fernando Nobre e o bastonário António Marinho Pinto. Mas que faltava ali quem de algum modo representasse os que pelo facto de trabalharem duramente não deixam de pensar bem, isso faltava. E essa é uma falta que, sempre se notando, nota-se ainda mais quando se trata de reflectir sobre o futuro do País.

O costume

Desde os primeiros minutos ficou claro que o ponto central da conversa (que desta vez nunca se alargaria a intervenções da plateia, ao contrário do que se tornou habitual) iria situar-se no que é habitual designar-se por «a Crise» com eventuais incursões sobre questões sociais. Logo saltou a receita que muito se ouve quando fala gente douta: «-O que é preciso é criar riqueza». Não me lembro, porém, que alguma vez esta interessante pergunta tenha sido complementada por outra que devia ser indispensável: «-Para quem?». E contudo bem se sabe, até porque é revelado pelos números oficiais, que a maior parte da riqueza criada em Portugal, muita ou pouca que ela seja, reverte para os detentores do capital, ficando para o sector do trabalho a menor parte, sempre aliás regateada por quem paga. É certo que lá mais para diante se falou em pobreza (Fernando Nobre, Júlio Pedrosa) e que Marinho Pinto aludiu, ainda que um pouco tangencialmente, à necessidade e vantagem de dinamizar o mercado interno melhorando o nível das remunerações do trabalho, mas nunca a conversa se fixou uns minutos sequer nesse ponto fundamental. José Adelino Maltez, analista e politólogo que parece ter entrado recentemente na moda televisiva, falou da corrupção, tema que é sempre de abordagem generalizada e sempre fica bem referir. Mas, como aliás é de regra, não tentou sequer dizer quem se serve dela, da corrupção, quem é corruptor. Serão os quase dois milhões de portugueses pobres? Serão os trabalhadores explorados? Já que se fala tanto de corrupção parece que seria adequado e natural levar a conversa um pouco mais adiante e averiguar quem a pratica, quem ganha com ela, e também quem com ela perde. Infelizmente, porém, nunca se vai tão longe, e é claro que desta vez também não se foi. Quanto a António Saraiva, dirigente empresarial, ouvimos dele o que é costume: «para distribuir temos de criar riqueza». Ninguém lhe disse então que a distância enorme entre ricos e pobres que caracteriza o nosso País e se tornou um triste traço identificativo da realidade portuguesa já demonstra claramente que riqueza há alguma, distribuição é que quase não há nenhuma. Quem disso duvide, lembre-se dos tais quase dois milhões de pobres oficialmente reconhecidos, mais dos incontados e talvez incontáveis que para lá caminham graças ao desemprego crescente e outros factores coadjuvantes. Pouco se falou deles ali, quando o tema do programa era o futuro português e também, inevitavelmente, o presente de onde se parte. E essa foi uma imperdoável escassez.


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