Prova de vida
Obstinada na sua velha faina, a RTP lá repetiu há dias o documentário triunfantemente intitulado «Comunismo – O Fim de uma Ilusão». Repetiu-o na «2», supostamente o canal mais frequentado por telespectadores propensos a reflectirem sobre coisas sérias, supondo-se que para os outros, já mais formatados pela televisão que temos, bastam os concursos, as cantigas e as danças para que o vírus da subversão, mais assustador que o da gripe, não se lhes infiltre nas cabecinhas. Do documentário propriamente dito já aqui se terá falado em tempos, quando da sua primeira transmissão, com o pormenor que o tema justificava, e por isso não se voltará ao assunto da mesma ou semelhante maneira. Mas a reincidência da estação pública apela para um registo e uma reflexão mínima. Em face do título do documentário e das repetidas proclamações da morte do comunismo, dir-se-ia que tudo quanto a RTP pode fazer agora é qualquer coisa de equiparável à violação de uma campa para destruição do cadáver, iniciativa macabra que não ficaria bem a ninguém e muito menos a uma operadora pública de televisão. Acontece, porém, que a campa está vazia, que nunca houve defunto, pelo que a RTP, coitada, está inocente da prática de um acto macabro. Apenas se constitui culpada de cumplicidade numa impostura cujas dimensões largamente a ultrapassam e que, pela sua manifesta inverdade, há muito se tornou ridícula. Aliás, ela própria, RTP, quase quotidianamente nos fornece indícios claros de que a notícia da morte do comunismo é manifestamente exagerada, como se diria plagiando Twain. Quando os seus noticiários nos informam das acusações de práticas alegadamente paracomunistas formuladas contra um Chavez, um Morales ou um Rafael Correia, isto para não sairmos da área geográfica da América Latina, ou quando se fazem eco da um pouco imbecil acusação de «sovietismo» a despropósito do programa eleitoral do PCP, a RTP confirma o que mesmo sem a sua ajuda se saberia muito bem: que o comunismo anda por aí (embora não necessariamente nas concretas formas denunciadas) e o medo dele também. Em verdade, o que a permanente propaganda anticomunista constitui é uma verdadeira “prova de vida” do comunismo. O capitalismo e os mercenários ao seu serviço sabem muito bem que o projecto comunista e as convicções que lhe dão solidez estão vivos e, mais assustador ainda, estão na rota do futuro. Acontece mesmo que são a única via para que haja futuro. E isso assusta-os. Pelo que, para seu próprio conforto, se aplicam a disparar sobre um túmulo vazio.
O «fim» de 89
Sempre me parece didáctico comparar, ainda que só em cuidada medida, a situação actual do mundo com a situação da Europa nos anos 20 do século XIX. Acontecera a Revolução Francesa umas três décadas antes, sobreviera a expansão bonapartista, Napoleão havia sido derrotado. Com a monarquia restabelecida em França e os ideais republicanos diariamente vilipendiados na opinião publicada, bem podiam as classes dominantes supor que a república tinha sido apenas um pesadelo ultrapassado. Houvesse televisão na primeira metade do século XIX e bem poderia acontecer um douto documentário intitulado «A República – O Fim de uma Ilusão». É escusado dizer o que o optimismo contido num título assim significava de miopia política, de ignorância acerca da inevitabilidade da procura humana de formas de organização social sempre menos injustas, sempre menos repugnantes. E não contabilizo aqui o facto então dificilmente previsível de em meados do século ir surgir um texto, um Manifesto, que iria abrir não só aos explorados daquele tempo mas ao mundo inteiro perspectivas libertadoras. E de já então terem nascido dois homens que aplicariam a inteligência à realidade e viriam apontar o caminho para um futuro compatível com a dignidade de todos os homens e mulheres. O caso é que parece inevitável que alguns tenham acreditado, respirando de alívio e recuperando do susto, que se chegara a um tempo em que a explosão social de 1789 e anos seguintes podia ser considerada uma ilusão acabada, e tudo teria voltado a ser como dantes assim devendo continuar até ao fim dos tempos. Como escreveu Goya numa das suas espantosas gravuras, o sono da razão produz monstros. Mas a razão, acordada, tem mais força.
O «fim» de 89
Sempre me parece didáctico comparar, ainda que só em cuidada medida, a situação actual do mundo com a situação da Europa nos anos 20 do século XIX. Acontecera a Revolução Francesa umas três décadas antes, sobreviera a expansão bonapartista, Napoleão havia sido derrotado. Com a monarquia restabelecida em França e os ideais republicanos diariamente vilipendiados na opinião publicada, bem podiam as classes dominantes supor que a república tinha sido apenas um pesadelo ultrapassado. Houvesse televisão na primeira metade do século XIX e bem poderia acontecer um douto documentário intitulado «A República – O Fim de uma Ilusão». É escusado dizer o que o optimismo contido num título assim significava de miopia política, de ignorância acerca da inevitabilidade da procura humana de formas de organização social sempre menos injustas, sempre menos repugnantes. E não contabilizo aqui o facto então dificilmente previsível de em meados do século ir surgir um texto, um Manifesto, que iria abrir não só aos explorados daquele tempo mas ao mundo inteiro perspectivas libertadoras. E de já então terem nascido dois homens que aplicariam a inteligência à realidade e viriam apontar o caminho para um futuro compatível com a dignidade de todos os homens e mulheres. O caso é que parece inevitável que alguns tenham acreditado, respirando de alívio e recuperando do susto, que se chegara a um tempo em que a explosão social de 1789 e anos seguintes podia ser considerada uma ilusão acabada, e tudo teria voltado a ser como dantes assim devendo continuar até ao fim dos tempos. Como escreveu Goya numa das suas espantosas gravuras, o sono da razão produz monstros. Mas a razão, acordada, tem mais força.