Vida em Veneza

Francisco Mota
Para o Manel Bastos que, apesar de cunhado, é meu amigo

Aqui há uns vinte e tal anos o Manel tinha acabado arquitectura e conseguido um estágio em Veneza. Eu vinha da Alemanha e tinha de ir a Itália, de forma que aí nos encontrámos.
O sítio de trabalho do Manel era num palácio no Canal Grande e com janela para a água. Aí o intenso tráfico surpreendia um terrícola como eu. Tinha uma garagem, onde a água entrava, com as portas fechadas para o canal e um barco a motor ali amarrado. Só passava a água. Percebi logo nas primeiras horas que estava num mundo diferente. Tudo estava na água: as ambulâncias, a polícia, os bombeiros, os transportes de bens e pessoas, os barcos do lixo, os barcos funerários, etc. Tudo. Os turistas eram muitos naquele fim de Verão ainda quente e percorriam, mapa na mão, o circuito que o turismo local ou algum livro os obrigava a fazer. Assim, em terra, as pessoas moviam-se por grandes itinerários pré-marcados, como se de formigas se tratasse.
Chegou a hora de comer e o Manel disse-me que ali perto havia um restaurante não turístico, onde se comia a melhor pizza de Veneza. Nunca fui muito entusiasta das pizzas, mas lá rumamos para o Campo di Santa Margaretta, onde, debaixo de um enorme toldo, na rua, se encontrava o restaurante Santa Margaretta. Ainda argumentei que a pizza era uma invenção com cerca de duzentos anos (pouco para ser um prato popular) e que era de Nápoles. Mas sentados, naquela calma, estava-se bem, o Campo era grande, e o chão em terra era todo um luxo na aquática cidade.
Encomendámos. Toda a gente pedia pizza. Um jarro com vinho apareceu e esperámos. As mesas foram-se enchendo até já não haver sítio e entretanto esperávamos. O divertimento da assembleia era ver como alguns turistas se introduziam no Campo e, ao ver que só o restaurante tinha gente, voltavam para trás. Claramente estavam fora do percurso marcado. Isto começou a transformar-se num passatempo, já que nenhuma pizza aparecia. Assim, em tons de voz pouco discretos, começaram a aparecer apostas sobre quantos passos daria o turista perdido até dar meia volta e voltar ao rebanho. Escusado será dizer que cada acerto ou erro era celebrado com algazarra desmedida, por toda a gente. Este gozo terá durado uma meia hora e de pizzas, nada. Mais algum jarrito de vinho terá caído.

À italiana

Quando o pessoal se cansou dos turistas e já com mais de uma hora de espera, começou a protestar com algum empregado que aparecia pela porta. As pessoas falavam alto, Ma non é possibile!! Incredibili! Gesticulavam sobretudo com os dedos das mãos que juntavam numa prece pagã. O empregado, longe de se assustar ou pedir desculpa, ainda gritava mais alto contra as mais de cinquenta pessoas, que eram os seus clientes. Eu, novo na cidade, avisei o Manel de que aquilo podia dar para o torto. Rindo-se, com o seu riso mudo, agarrando-se à barriga e com as lágrimas nos olhos de tanto rir, tranquilizou-me: estamos em Itália e em Veneza.
A chusma começava a misturar-se, falando todos ao mesmo tempo, interrogando ou respondendo ao vizinho da mesa ao lado. Num momento um vizinho começou a falar comigo e eu, não entendendo uma certa palavra, virei-me para o Manel para lhe perguntar o significado. Mas o Manel não estava lá. Olhei e vi-o discutindo vivamente, duas mesas ao lado. Toda esta confusão só se unificava quando aparecia o empregado. Aí, havia unanimidade. Toda a gente começava a berrar ao mesmo tempo, alguns levantavam-se. Até que o camarieri, superior a tudo, deixou cair que tinha havido um problema no forno, mas que já iam começar a sair. Toda a gente aplaudiu. Novo problema, quando as primeiras pizzas saíram, já ninguém se lembrava de quem estava antes e quem tinha chegado depois. Intensas negociações entre mesas, com apoios e ataques mútuos. Mais barafunda, que o empregado resolvia deixando as pizzas onde lhe apetecia. À medida que todos foram tendo a sua pizza, um estranho silêncio começou a instalar-se e uma grande paz começou a reinar.
Desde aquele dia tenho pensado muito se realmente estive naquele restaurante ou só participei, como figurante, nalgum filme da época dourada da comédia italiana, como Os inúteis, Oh amigos meus, A ultrapassagem, dirigidos por Mario Monicelli, Fellini, Dino Risi com gente como Alberto Sordi, Mastroiani, Gassman, Philipe Noiret, Ugo Tognazzi, Adolfo Celli e outros. Fecho os olhos e vejo-os a protestar na mesa ao lado à espera duma pizza, mostrando uma violência oral e gestual enorme e no minuto seguinte abraçando-se ao camarieri. Não estou seguro de que esta Itália ainda exista.
Perguntarão: mas a pizza era boa? Sinceramente, é a única coisa de que não me lembro.


Mais artigos de: Argumentos

A dimensão moral

Dirigindo-se aos católicos declarou Bento XVI, há poucos dias, em tom cinzento e repetitivo, acerca da crise económica mundial: «Sei que várias famílias passam necessidades... Não percam a coragem!».As intenções caritativos assim formalmente expressas nada têm a ver com as causas e consequências reais desencadeadas...

Prova de vida

Obstinada na sua velha faina, a RTP lá repetiu há dias o documentário triunfantemente intitulado «Comunismo – O Fim de uma Ilusão». Repetiu-o na «2», supostamente o canal mais frequentado por telespectadores propensos a reflectirem sobre coisas sérias, supondo-se que para os outros, já mais formatados pela televisão que...