O mito da paixão e a mudança de imagem

Jorge Messias
Crescem os níveis da pobreza e agigantam-se as fortunas privadas. O papel do Estado moderno declina e, sentindo-se impune, o patronato dita as suas leis aos trabalhadores. O que ontem se garantiu desmente-se hoje e, com o maior descaramento, anuncia-se o seu contrário: a verdade é mentira e a mentira é verdade, conforme as ocasiões. A crise é campo fértil de manobras dos políticos oportunistas, dos banqueiros desonestos e de um clero que de há muito «vendeu a alma ao diabo». Combinam-se bem uns com os outros, os grandes senhores do capital! ...
Regressemos ao tema da recente crónica desta local Religiões. Foram notícia manobras que se vão definindo e envolvem as forças no poder, a banca e a igreja. O tempo aperta. As eleições legislativas e autárquicas estão à porta. Há apenas pouco mais de dois meses para formar a grande frente do capital, para garantir resultados e para repor os princípios da justiça feudal e da autoridade régia. O PS apercebeu-se do gigantismo do problema e fez vir até si altos quadros norte-americanos da Blue State Digital, empresa altamente especializada nestas andanças da preparação de campanhas eleitorais com resultados garantidos e que também se envolveu na campanha de Obama.

«Paixão» por encomenda e «imagem» táctica

Os americanos «chegaram, viram e venceram» – como aliás já estava previsto que acontecesse. Passaram a pente fino as estratégias eleitorais do PS, aprovaram muitas delas mas reprovaram, pelo menos, duas das teses principais de Sócrates, nesta matéria. O primeiro «puxão de orelhas» foi dado por Ben Self, um dos grandes conselheiros que veio a Lisboa: «Numa campanha, a táctica pode mudar, mas os princípios, nunca!». Ou seja: o que se faz ou o que se diz acaba por ter menos impacto negativo na opinião pública do que a negação formal dos princípios (neste caso socialistas) que a candidatura afirma. Sócrates deve falar mais em «socialismo» e em liberdades, igualdade, direitos, garantias, livre iniciativa, etc., do que tem feito até aqui. Dias depois, veio aquela desgraçada atitude de Manuel de Pinho, na AR, e Sócrates perdeu a cabeça. Que diria o padrinho americano ao ver praticado semelhante despautério em vésperas de campanha eleitoral?
Esta primeira advertência prende-se com uma outra censura.
«As mudanças de discurso e de imagem soam falso e a falta de transparência. Sem envolvimento das pessoas e sem paixão nenhum movimento, nenhuma candidatura, pode ter sucesso. Só com paixão pode haver sucesso!». Assim falou Ben Self que não é poeta romântico nenhum, tal como Sócrates o não é. E como ambos têm os pés bem assentes na terra, decidiram entrar no negócio da «paixão» através daquilo que eles esperam vir a ter: multidões de figurantes «voluntários» que irão participar em próximos comícios controlados por grandes agências especializadas, como se faz nos EUA.
Sócrates ouviu a reprimenda mas nada já podia fazer. Não se apaga o passado. Fora arrogante e popularucho, à maneira de Berlusconi. Mas depois, de repente, quis mudar a imagem e mostrou-se contrito e humilde, à boa maneira das regras cristãs. Humilde e apaixonado.
Nada feito! A paixão política, no seu mais digno significado, não é uma questão de táctica mas de convicção. Não se compra nem se vende. Surge espontaneamente da necessidade imperiosa de participação activa nas mudanças da vida por um mundo melhor. E essa capacidade não a tem o PS.
A prova de que não a tem e põe em relevo um mar de contradições foi a decisão da direcção socialista tomada horas depois das declarações de Zorrinho e Ben Self. Nos actos eleitorais, autárquicos e legislativos, os socialistas deixavam de poder candidatar-se, simultaneamente, a presidentes de câmara e a deputados. Os americanos devem ter ficado com todos os cabelinhos em pé... Afinal, Sócrates nem sequer conhece o seu partido. Não é com estas que se provoca paixão. Mais clara foi Leonor Coutinho, deputada e candidata à AR e à Câmara de Cascais quando condenou a decisão do partido «por esta cortar a carreira política a muitos candidatos». Paixão é paixão, carreira é carreira. Esta ideia de «política» como «progressão de carreira» traduz o sentido real que os socialistas dão a paixão. É negócio pessoal movido pela ambição.
A Igreja assiste ao espectáculo mas limita-se a «tudo conferir em seu coração».
Tem uma sobrecarga de esforço com a crise financeira que agita o comércio bancário e exige a agilização do trabalho e a acelerada privatização dos sistemas de Saúde, do Ensino e da Justiça, subordinando-os às fundações, IPSS e Misericórdias. Antecipando os actos eleitorais, a igreja abre caminho à direita, com as sondagens, números e percentagens delirantes da «sua» Universidade Católica.


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