Sem notícias das Honduras
Convirá talvez, antes do mais, esclarecer que a situação referida em título se refere à passada segunda-feira, pois é em princípio às segundas-feiras que por imposições de ordem técnica são escritos os textos aqui consagrados ao que veio acontecendo (ou, pelo contrário, não aconteceu) na televisão que diariamente nos entra em casa. Significa isto que as coisas podem ter-se alterado entre segunda e quinta-feira, dia da saída do Avante!: parece improvável que assim tenha sido, mas não é impossível. De qualquer modo, o caso é que uma golpaça militar ocorrera nas Honduras, que o presidente democraticamente eleito havia sido preso e expulso do país, que o povo hondurenho protestava nas ruas e era reprimido com brutalidade, que dessa repressão resultaram mortos e feridos, e que de tudo isso busquei em vão informações mais completas nos diversos canais da TV portuguesa encontrando sobretudo notícias do Cristiano Ronaldo, embora não só. É certo que Ronaldo, glória da nossa política de exportação de craques do futebol, era aguardado em Madrid por oitenta mil admiradores, cousa de muito nos honrar e de gerar muita mobilização mediática, mas tenho motivos para crer que o presidente Zelaya, que prometera voltar, era aguardado por uns cinco milhões de hondurenhos (numa população de sete a oito milhões), e que mesmo contando apenas os que se deslocaram ao aeroporto de Tegucigalpa não haveria menos que os que se aglomeraram no estádio Santiago Barnabéu. Ora, o que eu queria saber era o que acontecera a Zelaya e a quem o acompanhava, o que parecia ser uma curiosidade legítima. Mas a televisão portuguesa nada me dizia sobre isso. Não é surpreendente, bem sei: já sendo tão difícil que ela nos dê certas notícias do nosso próprio País, não espanta que se desmazele quanto ao dever de nos informar do que em dada altura aconteceu nas Honduras, país que muito boa gente nem sabe bem onde fica mas que, bem me lembro, fica encostadinho à Nicarágua, dado este que aliás me preocupa um pouco. Ainda assim, marquei à televisão portuguesa uma espécie de «falta de material», como se diz no ensino. E azedei. Tanto mais que ouvira dizer a alguém, dias antes, creio que no Euronews, que o presidente Zelaya tinha sido destituído porque «virara à esquerda», e eu estava cheio de curiosidade por saber o que é que concretamente consubstanciara tão grave pecado, em muitos lugares do mundo punido com a morte, como se sabe.
Onde se lembra La Fontaine
Entretanto, na semana anterior soubera alguma coisa, como aliás qualquer outro cidadão que se tivesse interessado pelo assunto. Que o golpe militar (método que já se julgava ter caído em total desuso na América Latina, onde fez parte das mais lídimas tradições político-militares mas ficou muito mal visto depois da infame pinochetada de 73) havia sido imediatamente condenado pelos Estados Unidos, por todos os estados da América Latina, pelos 27 estados agrupados na União Europeia e pela Rússia, o que não era nada pouco. Que a população hondurenha se manifestava nas ruas contra o golpe e por isso era reprimida pela polícia e por forças militares. Que surgira um presidente-fantoche que nenhuma entidade reconhecia. Enfim: que as coisas aparentemente não corriam bem para os golpistas. Mas que, não obstante, eles persistiam, o que parecia singular. Perante isto, a pergunta muda que eu fazia à TV era sobretudo sobre o que explicava essa persistência aparentemente desprovida de apoios. É certo que Manuel Zelaya me parecia um bocado feio, que não engraço com aqueles bigodes tipicamente sul-americanos que me lembram telenovelas mexicanas, que o sombrero com que o presidente parece gostar de se cobrir não lhe fica bem. Mas estes dados de pormenor não eram resposta para a pergunta que me obstinava em fazer e que a TV se obstinava em ignorar. Restava, assim, aquela acusação de «viragem à esquerda» que, contudo, hoje mais que há uns tempos me parecia uma insuficiente «razão», um frágil pretexto. De onde a ansiedade que me mordiscava. Foi então que, dos confins da memória, me surgiu, imprecisa, a última quadra de uma fábula de La Fontaine (talvez na tradução de Castilho) incluída num velho livro escolar: «É assim que os maus procedem / desde as mais tenras idades;/ com razões que inventam escondem / seus crimes, suas maldades.» E entendi. Este caso e muitos outros.
Onde se lembra La Fontaine
Entretanto, na semana anterior soubera alguma coisa, como aliás qualquer outro cidadão que se tivesse interessado pelo assunto. Que o golpe militar (método que já se julgava ter caído em total desuso na América Latina, onde fez parte das mais lídimas tradições político-militares mas ficou muito mal visto depois da infame pinochetada de 73) havia sido imediatamente condenado pelos Estados Unidos, por todos os estados da América Latina, pelos 27 estados agrupados na União Europeia e pela Rússia, o que não era nada pouco. Que a população hondurenha se manifestava nas ruas contra o golpe e por isso era reprimida pela polícia e por forças militares. Que surgira um presidente-fantoche que nenhuma entidade reconhecia. Enfim: que as coisas aparentemente não corriam bem para os golpistas. Mas que, não obstante, eles persistiam, o que parecia singular. Perante isto, a pergunta muda que eu fazia à TV era sobretudo sobre o que explicava essa persistência aparentemente desprovida de apoios. É certo que Manuel Zelaya me parecia um bocado feio, que não engraço com aqueles bigodes tipicamente sul-americanos que me lembram telenovelas mexicanas, que o sombrero com que o presidente parece gostar de se cobrir não lhe fica bem. Mas estes dados de pormenor não eram resposta para a pergunta que me obstinava em fazer e que a TV se obstinava em ignorar. Restava, assim, aquela acusação de «viragem à esquerda» que, contudo, hoje mais que há uns tempos me parecia uma insuficiente «razão», um frágil pretexto. De onde a ansiedade que me mordiscava. Foi então que, dos confins da memória, me surgiu, imprecisa, a última quadra de uma fábula de La Fontaine (talvez na tradução de Castilho) incluída num velho livro escolar: «É assim que os maus procedem / desde as mais tenras idades;/ com razões que inventam escondem / seus crimes, suas maldades.» E entendi. Este caso e muitos outros.