O desporto e o desenvolvimento sustentado

A. Mello de Carvalho
A democratização real da prática desportiva, ou seja, aquela que permite o acesso de todos à actividade da sua escolha e ao desenvolvimento máximo das suas capacidades é, evidentemente, um objectivo difícil de atingir. No nosso País, assume características próprias que devem ser devidamente analisadas.
Muitos defendem que, para o alcançar, é indispensável, logo à partida, liquidar todas as formas de desigualdade produzidas por um sistema social, em si de carácter essencialmente segregador. Esta perspectiva, justa por si própria, tem no entanto um carácter facilmente manipulável por quem está interessado apenas em manter os seus próprios privilégios e não mudar seja o que for ao sistema.
Ao partir de uma base perfeitamente justa, esta posição relega, de facto, a luta pela democratização do desporto para um futuro de contornos indefinidos, enquanto os trabalhadores e os seus filhos, e os elementos das outras camadas populares sem meios, vão sendo privados de uma prática cultural essencial. O manuseamento desta concepção tem, por isso, de ser feito com todo o cuidado pois, na prática, ao exigir que as condições sociais sejam plenamente justas para só depois pensar no desporto, cai-se facilmente num processo de agravamento da própria segregação social.
Por outro lado, esta atitude não toma em consideração dois outros importantes aspectos. Em primeiro lugar esvazia completamente o desporto da sua função de interventor directo na própria realidade. Naturalmente que a emancipação do indivíduo não passa pela criação de condições do seu acesso à prática desportiva. Mas o desporto, como actividade cultural, pode e deve desempenhar um papel nesse processo.
Como factor de desenvolvimento individual, de expressão e criatividade, actividade socializadora e convivial, o desporto transporta em si enormes potencialidades de formação do ser humano e de aperfeiçoamento da sociedade. Tem, por isso, um papel indeclinável no seu processo de transformação.
Aliás, não é por acaso que ele é tão fortemente utilizado como elemento alienador das massas populares, pelas forças que lutam por manter as suas prerrogativas. Na verdade, não existem no desporto só aquelas potencialidades aqui consideradas como constituindo possibilidades concretas de acção positiva. Na sua configuração e dinâmica contraditória, o desporto também transporta potencialidades de sinal contrário (segregação, violência, dopping, corrupção, etc.).
São as forças sociais que tudo procuram mudar, para tudo manter na mesma, que exploram a fundo, integrando o desporto na grande manobra de enleamento do indivíduo em relação à compreensão dos mecanismos profundos que comandam a vida social, bastando verificar o papel que o futebol desempenha em termos sociais. Como fenómeno capaz de movimentar enormes massas de indivíduos quer através do espectáculo desportivo, quer através de uma prática generalizada vazia de sentido social e de significado cultural, manifesta grande eficácia no desempenho daquelas funções.
Eis uma estranha forma de demonstrar as «qualidades» do desporto como prática social. Mas julgamos tornar claro, desta forma, a enorme força que aquele potencial possui, além de se procurar chamar a atenção para a forma decidida e directa, como ele é utilizado.
A verdade é que, como potencialidade que é, esta força pode ser expressa num ou noutro sentido, tudo dependendo das condições sociais da sua expressão. Isto demonstra que o desporto não é nem bom, nem mau em si e por si. Não possui, é claro, aquele conjunto de «qualidades naturais» apregoadas, ao longo de mais de um século, em todos os discursos tradicionais. Como actividade cultural que é, e como prática social, o valor da sua acção depende dos objectivos para que se projecta, das intenções com que é utilizado e das condições em que é realizado.
A concepção de que o desporto só deve ser encarado, no processo de luta contra a injustiça social e de construção de uma sociedade capaz de responder às necessidades dos trabalhadores, numa fase posterior é, por isso, duplamente enganadora: por um lado porque as camadas populares «sentem», no presente, ter direito ao acesso a uma actividade enriquecedora e, portanto, exigem que ele se torne realidade. Por outro lado, porque o próprio processo de luta perde uma das suas componentes essenciais, e «entrega» um importante campo da dinâmica social à exploração alienadora.


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