Fogos, fumos e lutas de classes

Jorge Messias
«Crise» não é em si mesma expressão que chegue para explicar o que se passa em Portugal. Os escândalos públicos, as trapaças e as mentiras formam uma torrente que não só é imoral como revela que na governação toda a acção está virada para a defesa dos interesses dos ricos e a intensificação da exploração dos pobres. Nada mais. É preciso que os trabalhadores sejam esbulhados até aos ossos. E que os banqueiros continuem a dominar o poder político.
As últimas semanas, então, foram febris. Prisa, PT e Media Capital envolveram-se numa novela televisiva. Compra e não compra, o certo é que o negócio, ao contrário do que se afirma oficialmente, irá para a frente. Descobre-se que existe no Ministério das Obras Públicas um «portal» clandestino que serve para pagar milhões por «ajuste directo». A denúncia foi feita mas o «portal» continua a funcionar. Os bancos, as fundações, as transferências de dinheiro, os off-shores, os créditos mal-parados, o escândalo do Liechtenstein, são verdadeiros mares de lama. Mas nada efectivamente acontece aos responsáveis. No fundo, o que é importante é que as fraudes «dinamizam» o mercado financeiro. É irrelevante de onde o dinheiro vem e para onde o dinheiro vai. O que interessa é constatar-se que ele «gira». Todo o poder àqueles que sabem dar a «volta por cima»...
Os exemplos que citámos são pálidos reflexos dos fogos que por aí lavram. O País inteiro está a arder. Os que lançam e alimentam os fogos, os pirómanos, sabem que é necessário que tudo arda, que todas as liberdades se esfumem; mas que também tudo se deve fazer com algum recato. Os fumos dos fogos prestam-se muito bem para ocultar os próprios fogos. Por isso, a direita procura a protecção dos mitos, de uma obscura herança revolucionária mas populista e dos vantajosos delírios do culto da personalidade. Na ânsia de emudecer as reivindicações do povo e de contornar estrategicamente as lutas de classe, a burguesia do dinheiro e da política tudo destrói.

A Igreja do lucro e da ambição

Em vésperas de eleições legislativas e autárquicas, todo o extenso caderno reivindicativo da Igreja vai sendo aceite pelo aparelho do Estado. Financiamentos, subsídios, isenções, comparticipações, novos privilégios, tudo será pago, concedido e legislado pelo Governo, caso a Igreja se mantenha como sua parceira. Sócrates sabe que só a sociedade partilhada entre os ricos e o clero lhe poderá permitir manter a esperança do poder. E para isso, naturalmente, é preciso pagar. Sócrates não regateia.
Assim, o Governo afirma-se socialista mas procura activamente apoios da direita dita independente e da sociedade civil que se proclama católica. Com grande pompa, pisca o olho aos ricos e abraça os gestores da «sociedade civil» e das IPSS. É com estes que aceita discutir as «políticas para os próximos anos», não com os trabalhadores aos quais despreza. O seu mundo é o das elites.
As «Novas Fronteiras» do PS são tão velhas quanto é velho o autoritarismo despótico e a ambição das hegemonias. É um facto que constantemente se revela e que foi esta semana posto em relevo quando Carlos Zorrinho, coordenador na Internet da campanha eleitoral socialista, convidou e fez vir a Lisboa representantes da norte-americana Blue State Digital que conduziu na net toda a estratégia da campanha de Barack Obama. Convém resumir aquilo que agora é público.
Primeiro, a questão técnica: Zorrinho é um homem poderoso que assume, entre outros cargos, os da condução do Plano Tecnológico do PS e de uma outra frente indefinida a que chamam Democracia Interactiva. Zorrinho falou e disse: «O PS quer que 90% das suas acções de campanha nas legislativas partam de movimentos de voluntários e não do tradicional aparelho do partido». Acrescentou algumas outras revelações interessantes mas é sobretudo esta que convém reter.
Em segundo lugar, a questão estratégica e financeira: está em curso a instalação, em todos os distritos (mas, sobretudo, naqueles onde as taxas de desemprego são maiores) de uma rede de «Centros Sócrates» cuja finalidade será mobilizar, articular e organizar voluntários para a campanha do PS. Paralelamente – e à imagem do que aconteceu na campanha de Obama – vão ser lançadas online «plataformas financeiras» destinadas à obtenção de fundos através de ofertas de particulares individuais ou de empresas. Na campanha de Obama (e apenas por esta via) foram obtidos mais de 770 milhões de dólares. Mas o valor relativo de cada oferta é irrelevante. Os tecnocratas explicam: «Dar um donativo é um acto extremamente importante. Quem contribui passa a sentir-se parte da campanha».
A possibilidade de transposição para o terreno deste megalómano projecto, em apenas dois meses, é evidentemente discutível. Portugal não é os EUA. A única entidade capaz de mobilizar as massas, dar-lhes mobilidade e utilizar a rede de instituições já instalada é a Igreja e a sua «sociedade civil», dotada com as IPSS, as Misericórdias, os Escutas católicos, os bancos contra a fome, etc. São instituições que actuam entre os desempregados.
Também não pode passar em claro que o Coordenador-Geral da Campanha Legislativa do PS é o actual ministro do Trabalho e Segurança Social, Vieira da Silva, tão bem visto entre a «Sociedade Civil.
«A Deus tudo é possível».


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