A questão das cartilhas

Correia da Fonseca
Júlio Pomar recebeu mais um prémio internacional, e o facto levou o programa «Câmara Clara» a dedicar-lhe uma emissão inteira, praticamente em regime de exclusividade, no que fez muito bem. «Câmara Clara», apresentado e decerto gerido por Paula Moura Pinheiro, é, como se saberá, o grande programa de informação cultural da RTP, integrado na «grelha» da «2», é claro, por força da regra de tal modo «do costume» que até já fica mal recordá-la: porque tem directamente a ver com cultura, e essas coisas da cultura não hão-de ser, no aparente entendimento da RTP, para serem transmitidas num canal generalista como a «1», em princípio frequentado por toda a gente. Ora, sendo «Câmara Clara» o programa que é e tendo na programação da «2» o relevo que tem, acontece que carrego comigo o pesado remorso de apenas o ter referido duas ou três vezes, sempre muito de passagem e em lugares discretos. Poder-se-ia admitir que este quase total silêncio por parte de quem teria a obrigação de não o manter resulta do facto de tudo ou quase tudo o que acontece em «Câmara Clara» ser inteligente, agradável, positivo e tendencialmente útil. Como com ironia dizia quem em matéria de crítica de televisão me ensinou quase tudo ou mesmo tudo, «a felicidade não tem história» e por isso não estimula a escrita. Neste caso, porém, não é bem assim. É que, sendo «Câmara Clara» um programa recheado de cultura pelos temas que aborda e pelas excelentes figuras que por ele passam, digamos que a transpirar cultura por todos os poros, com razão ou sem ela sinto que tudo aquilo decorre num plano a que nem sequer é convidado a aceder um largo segmento da teleplateia que estaria disposto a entrar ali se as coisas fossem diferentes, se em «Câmara Clara» não se tivesse instalado um tácito clima de «reservado o direito de admissão». E o pior é que, porventura para minha vergonha, responsabilizo por isso a própria presença de Paula Moura Pinheiro, sempre distintíssima mas distante, densamente informada mas com um toque de sofisticação que impede a empatia com o público. Por menos que o queira, comparo a sua presença televisiva com a do efectivamente popular «Acontece» do Carlos Pinto Coelho. É mais que óbvio que Paula Moura Pinheiro é muitíssimo mais bonita. Mas quanto a estimular o interesse pela cultura, a curiosidade pelos factos culturais, inclino-me a crer que o apresentador do assassinado «Acontece» era mais eficaz.

A intromissão de um eco

Contudo, como facilmente se adivinhará, não é para comparar o rosto de Paula com a cara de Carlos que hoje trago para estas colunas o programa «Câmara Clara». O caso é que no decurso da longa conversa havida entre Paula Moura Pinheiro e Júlio Pomar no programa transmitido no passado domingo foi abordada a passagem do artista e da sua obra pelo Neo-Realismo, fase que durou uns catorze anos sem contar com os efeitos que terão perdurado em fases posteriores. Aliás, Pomar teve o cuidado de sublinhar, numa frase breve mas categórica, que esses anos de Neo-Realismo foram muito importantes. Aconteceu, porém, que Paula Moura Pinheiro terá julgado ser seu dever lançar, em jeito de objecção depreciativa, que essa teria sido uma fase condicionada por «uma cartilha ideológica» Confesso que aquilo me caiu pessimamente. Antes do mais porque esperava melhor de Paula Moura Pinheiro, isto é, que ela nem só um pouco embarcasse na mistura primária, e para falar com franqueza sempre um pouco reles, de preconceitos pelo menos de ordem politizante com avaliação cultural e estética. Depois, por razões mais amplas e que implicam toda a história da criação cultural. É claro que houve uma «cartilha ideológica» na raiz da grande pintura religiosa ao longo dos séculos, na tantas vezes sublime música sacra, na beleza esmagadora das grandes catedrais, e também na Terceira e na Nona sinfonias de Beethoven, isto para não alongar a enumeração que tenderia para o infinito. E ninguém, nem mesmo decerto Paula Moura Pinheiro, se incomoda com a presença de tais cartilhas. Em verdade, as «cartilhas ideológicas» não só motivam artistas como são razões motoras de vários aspectos da vida, e isto é tão óbvio que é quase ridículo eu vir aqui lembrá-lo. A questão é que não o teria feito se a observação de Paula Moura Pinheiro não tivesse surgido como o eco de preconceitos inaceitáveis que andam por aí, infiltrados em diversos sectores. «Câmara Clara» não merecia a feia intromissão. Nem o seu público. Nem, estou em crer, a própria Paula Moura Pinheiro.


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