O futuro é o socialismo

O Estado Novo foi um regime que, utilizando a ideia do nacional-sindicalismo, se distinguiu por importantes resultados nas esferas económica, social e política.
Sa­lazar, que gos­tava de ser re­co­nhe­cido como o «pai da nação», foi um D. Juan mais ou menos de­pra­vado que entre uma reu­nião e outra do Con­selho de Mi­nis­tros man­tinha se­cretos ro­mances com se­nhoras da alta so­ci­e­dade.
Em Por­tugal nunca houve di­ta­dura mas tão só um re­gime aus­tero, li­gei­ra­mente re­pres­sivo, que em nome da paz so­cial e dos su­premos in­te­resses do País se viu obri­gado a en­viar as 'maçãs po­dres' ao ser­viço de Mos­covo – vulgo co­mu­nistas – para con­for­tá­veis cen­tros de de­tenção onde não se pou­pavam es­forços para a sua re­cu­pe­ração.
Ca­e­tano foi um de­mo­crata in­com­pre­en­dido, cheio de boas in­ten­ções, que não teve tempo de levar a cabo o pro­jecto de mo­der­nizar e li­be­ra­lizar a so­ci­e­dade por­tu­guesa.
O 25 de Abril foi uma birra de mi­li­tares des­con­tentes e mal pagos que co­mu­nistas e afins qui­seram ca­valgar para ins­taurar uma di­ta­dura – essa sim, ver­da­dei­ra­mente te­ne­brosa – em Por­tugal.
E Mário So­ares - fi­gura tu­telar do PS – é o «pai da de­mo­cracia» que com a sua sábia po­lí­tica, pru­dente in­ter­venção e co­e­rente acção pôs termo aos des­va­rios do «gon­çal­vismo» e co­locou Por­tugal na Eu­ropa, que o mesmo é dizer no ca­minho do pro­gresso, da jus­tiça e do de­sen­vol­vi­mento so­cial
.

Grosso modo, a caricatura feita acima traduz o estado a que se chegou 35 anos volvidos sobre a Revolução de 25 de Abril, em resultado da campanha de falsificação, branqueamento e mistificação da História que vem sendo feita em Portugal.
Sendo certo que as palavras de­mo­cracia, li­ber­dade, jus­tiça so­cial são das mais persistentemente usadas no léxico nacional, a questão que se coloca é a de saber por quê tantos e tão bons «democratas» assim se empenham em borrar o passado.
A resposta a esta pergunta pode ser encontrada (embora não se esgote aí) num livro imprescindível de Álvaro Cunhal, editado há 10 anos pela Editorial «Avante!»: A Ver­dade e a Men­tira na Re­vo­lução de Abril (A contra-re­vo­lução con­fessa-se).
Logo no início da obra pode ler-se:
«Um aspecto importante da verdade e da mentira na política, e não só, é a assunção das responsabilidades do que na realidade se quer, do que se afirma, do que se faz, do que se promete. Também do que se afirmou, fez e prometeu no passado.
(...) A mentira é uma fuga à responsabilidade e à responsabilização. É enganar a sociedade sobre o pensamento, a acção e o valor próprio. É negar ou ocultar planos, ideias, compromissos, actuações e comportamentos, por saber que, se conhecidos, serão severamente condenados».
Não é preciso procurar muito para encontrar à nossa volta exemplos elucidativos que corroboram o que acima se diz. Ainda esta semana, no DN de terça-feira, 28, Mário Soares escrevia: (...)«A revolução – esta é a verdade – não foi, nem é, a Reforma Agrária, que não chegou a muito mais do que um ensaio, nem das nacionalizações, feitas à pressa e mal, no seguimento do 11 de Março de 1975».
Se recuarmos a 1964, data em que Soares funda a Acção Socialista Portuguesa (ASP), encontramos na sua De­cla­ração de Prin­cí­pios ser seu objectivo a «instauração em Portugal da democracia socialista», «uma sociedade sem classes», «socialismo em liberdade» e «democracia real», para além de uma posição frontal «contra o imperialismo e contra a sociedade capitalista», contra o «poder despótico do capital» e a proclamação de que a «concentração do poder económico privado é incompatível com os princípios democráticos» e tem «uma acção antinacional». Quanto ao futuro, a ASP de Soares entendia que «devem ser propriedade pública os bancos, as indústrias de base, de extracção e de transformação, as comunicações e os transportes», para além de advogar que «incumbe às classes trabalhadoras lutar pela conquista da liberdade» e pela «propriedade social dos meios de produção e circulação».

Das pa­la­vras aos actos

Entre as duas datas, muita água correu debaixo das pontes, mas poucas foram limpas. Não cabendo neste trabalho fazer a história da contra-revolução, por manifesta falta de espaço, parece no entanto oportuno revisitar alguns marcos que foram fazendo o caminho do estado a que isto chegou.
Pegando no mote dado por Soares no citado artigo do DN, vejamos o que próprio dizia na sua tomada de posse como primeiro-ministro do I Governo Constitucional, no ano de 1976: (...) «As grandes conquistas da Revolução são irreversíveis. Não voltaremos atrás na política de nacionalizações. (...) A Reforma Agrária prosseguirá.» (Por­tugal So­ci­a­lista, 29-7-76).
Antecedendo a revisão da «Constituição Progressista» – que Soares continua a apresentar hoje como se fosse a mesma Lei Fundamental aprovada em 25 de Abril de 1976, esquecendo deliberadamente as revisões levadas a cabo em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005 que a desvirtuaram – antecedendo a revisão da Constituição de Abril, dizíamos, os sucessivos governos PS e PSD, sozinhos ou com a muleta do CDS, sem nunca assumirem os seus objectivos, foram construindo o edifício «legal» que destruiria as conquistas da Revolução.
Lembramos a Lei da Delimitação dos Sectores (Lei 46/77) ou a chamada «Lei Barreto» (Lei 77/77), que abriram caminho à reprivatização das empresas nacionalizadas (banca, seguros, cimento...) e à destruição da Reforma Agrária e à restauração dos latifúndios.
Lembramos ainda a Lei 84/88, que permitiu ao Estado a alienação de 49% do seu capital nas empresas nacionalizadas; a transformação das empresas do Estado em sociedades anónimas (TAP, Portucel, Siderurgia Nacional, TLP, Quimigal); a Lei 88A/97 que abriu ao capital privado os Correios, os Transportes Ferroviários, os Portos e as indústrias relativas à Defesa Nacional; a Reforma Administrativa do Estado que entregou à dinâmica do lucro capitalista os principais sectores sociais, como a saúde e a educação; e a fúria privatizadora de tudo quanto é susceptível de dar lucro.
Dizer, como Soares, que a «Revolução dos Cravos desembocou, como devia, e era também a vontade dos militares de Abril, na normalização democrática»; ou afirmar, como o agora Presidente da República Cavaco Silva, que «o emprego, a segurança, a justiça, a saúde, a educação, a protecção social, o combate à corrupção, são questões básicas que devem marcar a agenda política e em torno das quais deve ser possível estabelecer consensos entre os partidos estruturantes da nossa democracia»; ou garantir, como fez Sócrates também neste 25 de Abril, que o Governo PS faz uma «política de verdade» e que se há crítica a fazer às anteriores gerações é que não fizeram o que deviam para que existissem mais oportunidades, é no mínimo um embuste.
Na verdade, o que os representantes dos partidos que fizeram a contra-revolução, actuais e passados, estão mais uma vez a tentar é atribuir à Revolução de Abril a responsabilidade que lhes cabe por inteiro na destruição do aparelho produtivo, da economia nacional e das condições de vida dos portugueses.

A ce­reja no bolo

Destruída a indústria, a agricultura e as pescas; entregue o comércio às grandes superfícies de capitais transnacionais; restaurado e engordado o capital financeiro e especulativo, faltava aos partidos da alternância colocar a cereja no bolo: liquidar os direitos conquistados pelos trabalhadores e impor novas e mais gravosas formas de repressão. Desde a lei dos con­tratos a prazo (BTE, n.º 10, Outubro de 1978) imposta pelo Governo PS liderado por Mário So­ares, passando pela lei dos des­pe­di­mentos (64A/89 de 27 de Fevereiro) do Governo de Ca­vaco Silva ou pela lei (21/96 de 23 Julho) da chamada fle­xi­bi­li­zação dos ho­rá­rios do tra­balho e po­li­va­lência do Governo Guterres, até ao Có­digo de Tra­balho cozinhado primeiro pelo PSD e revisto e agravado depois pelo Governo Sócrates (2009), longo foi o caminho percorrido para a restauração do capitalismo em Portugal ou, como diz agora Soares, para a «normalização democrática».
A par de tudo isto está ainda o ataque sem precedentes às liberdades e garantias dos cidadãos, sempre em nome da lei e da ordem, como atesta a cada vez mais frequente criminalização de sindicalistas e outros cidadãos pelo exercício da liberdade de expressão e de manifestação, e a cada vez mais generalizada repressão nas empresas de que o Avante! não cessa de dar conta, incluindo nesta edição (págs. Trabalhadores).

O ca­minho é a luta

Voltamos mais uma vez a Álvaro Cunhal e à obra citada:
(...) «A Constituição aprovada em 1976 contém princípios que, se cumpridos num funcionamento normal das instituições e na prática política, afastariam, ou pelo menos reduziriam drasticamente, as possibilidades efectivas de absolutização e abuso do poder.
«Isso não sucedeu porém. O processo contra-revolucionário caracterizou-se precisamente pela tendência dos partidos, que constituíram governo e alcançaram maioria na Assembleia da República, para absolutizarem o poder, abusarem do poder e contestarem, e em alguns casos liquidarem, mecanismos de fiscalização democrática do seu exercício.»
A realidade aí está a demonstrá-lo todos os dias com os escândalos político-económicos, as riquezas obscenas de meia dúzia, a pobreza aviltante de milhões de portugueses, a iniquidade de uma classe vendida ao capitalismo.
Por isso dizemos, ao assinalar os 35 anos do 25 de Abril, que é preciso Abril de novo. Porque, como também escreveu Álvaro Cunhal, «o regime democrático ao qual a contra-revolução conduziu Portugal não é um regime final e irreversível.» Por duas principais razões: «porque está minado de contradições insolúveis e porque a luta do povo português continua.»
E se é verdade que a Revolução de Abril não se repete, não é menos verdade que muito dela continua presente na sociedade e na consciência dos portugueses, e que na sua história, conquistas e valores – que as forças instaladas no poder tanto se empenham em querer apagar – estão os germes da futura sociedade que havemos de construir. Uma sociedade sem exploradores nem explorados, uma sociedade socialista.

Ana­bela Fino


Mais artigos de: Em Foco

Continuar Abril em Maio

Muitos milhares de pessoas assinalaram os 35 anos da Revolução dos Cravos com os olhos postos na actual situação do País e na necessidade de fazer Abril de novo. Esta exigência voltará às ruas amanhã, nas manifestações do 1.º de Maio.

Abril exige futuro

Trinta e cinco anos depois, o futuro. Quantos, de entre os milhares de pessoas que desfilaram na avenida da Liberdade, em Lisboa, celebrando o 25 de Abril, viveram essa jornada maior da história de Portugal? Homens e mulheres de 40 anos, por exemplo, não devem recordar, «pessoalmente» sequer, a madrugada em que o Movimento das Forças Armadas derrubou o governo de Marcelo Caetano desferindo assim o primeiro e profundo golpe no fascismo português, a que se seguiu uma verdadeira insurreição popular e um processo revolucionário que, contra os ventos da social-democracia e as marés da reacção fascista, colocou o País no rumo do socialismo.