O meu amigo Pedro
Para o Zé, a Maria, o António, a Luísa, a Clara, o Mário, o Manel, a Joaquina, a Margarida, o Fernando e ainda para todos os que não conheço, que fazem da vida uma luta para que algum dia muita gente viva em justiça e alegria.
«Precisava que me levasses à minha terra. Tenho lá uma reunião muito importante e não me apetece conduzir. Sinto-me sem forças.»
Tinha-me dito isto no dia anterior o meu amigo Pedro e, por isso, naquela tarde íamos pela estrada paralela ao Tejo, depois de passar Abrantes, caminho do Alto e Interior Alentejo. Chegámos ao anoitecer e, durante a viagem, o meu amigo não tinha dito nada. Via-se que não estava bem. Eu respeitei o seu silêncio.
Entrámos na casa e em cima da mesa esperava-nos um queijo fresco de mais de meio quilo, feito com leite de cabra nessa mesma manhã. Ao lado um pão de quilo, tudo tapado com uns guardanapos bordados a ponto-cruz. Abrimos uma garrafa de tinto e comemos quase tudo. Sabia bem.
Passámos a uma salinha ao lado. O Pedro deitou-se e eu, antes de me sentar num sofá velho e confortável, perguntei-lhe se queria alguma coisa. Sim, uns cobertores, por favor. Descalçou-se, tapou-se e deitou-se na cama onde costumavam dormir as suas filhas.
Fui buscar um copo e servi-me generosamente de um Rum Habana Club 7 Anos e acendi um charuto pequeno. O silêncio era total. Vagamente chegava uma música de chocalhos de cabra ou ovelha. Mas tudo longe, muito longe.
O meu amigo Pedro continuava de olhos fechados, mas antes de me ir deitar pude ver como a cara estava molhada de alguma lágrima fugitiva.
Na manhã seguinte, quando acordei, fui ver como estava o meu amigo. Não estava! Procurei, fui à varanda e daí vi-o num campo próximo. Vi como mastigava folhas de oliveira, como apanhava erva verde do chão e ia provando de tudo, como arregaçou as mangas e esfregou mãos e braços de terra escura e solta, vi como se lavou num regato (que neste Fevereiro levava água limpa, fria e saborosa). Quando toda a terra desapareceu, fez das mãos uma concha e lavou a cara. De certeza que teve frio, mas não tirou a água da cara ou das mãos. Sentou-se uma pedra e olhou longamente o regato, em silêncio, como para ouvir a música que a água tocava no início do seu longo caminho até ao rio Sever, depois o Tejo e finalmente o inacabável mar.
Voltou, com uma cara viva e molhada, quase feliz, e disse-me: «Já podemos voltar.» Eu não entendi. «E a tua reunião tão importante?»
«Já acabou. A reunião era comigo, com a minha terra, a minha água, o meu ar e o meu silêncio. Com o cheiro disto tudo. Já me encontrei comigo. Tinha tantas saudades minhas. Obrigado por me teres trazido, amigo.»
Arrumámos um pouco a casa, comemos o resto do queijo, fechámos a porta, escondemos a chave como era costume e partimos. Já no carro o meu amigo Pedro, começou a marcar um número. «Está? É o Manel Azinheirinha? Bom dia, sou eu. Podemos aquecer-nos com um ensopado de borrego, mas na versão “sem batatas”, pouco gorduroso e muito cheiroso? Óptimo, estaremos aí em Santiago do Escoural daqui a duas horas. Manel, vá abrindo uma garrafa de tinto, com dois ou três anos e que não nos arruinemos com o preço. Até logo.»
«Vês, ontem tu trataste de tudo hoje sou eu.»
Passamos por Marvão. Enchemos os olhos de mundo. O ar estava frio e transparente. Tudo respirava uma paz muito grande. O meu amigo Pedro começou a cantar baixinho uma das canções do seu admirado Joaquín Sabina:
...porque uma casa sem ti é uma emboscada/um corredor num comboio de madrugada/um labirinto/ sem luz nem vinho tinto/um véu de alcatrão numa mirada.
...porque uma casa sem ti é um escritório/ um telefone a arder numa cabine/ uma palmeira/ num museu de cera/ um êxodo de escuras andorinhas.
De novo o silêncio, mas já não era o silêncio triste. Disse-lhe: «Pedro, respeito os teus problemas, sei que devem pesar, sei que muitas vezes sentes que não há nada mais importante do que essa dor indefinida, mas também penso que o fundamental é lutar, sobretudo agora em que tudo o que é feio e mau, manda e corrompe impunemente.»
Não pensou muito o meu amigo Pedro: «tens razão. Vamos lutar, com a beleza e a alegria do nosso lado.»
«Precisava que me levasses à minha terra. Tenho lá uma reunião muito importante e não me apetece conduzir. Sinto-me sem forças.»
Tinha-me dito isto no dia anterior o meu amigo Pedro e, por isso, naquela tarde íamos pela estrada paralela ao Tejo, depois de passar Abrantes, caminho do Alto e Interior Alentejo. Chegámos ao anoitecer e, durante a viagem, o meu amigo não tinha dito nada. Via-se que não estava bem. Eu respeitei o seu silêncio.
Entrámos na casa e em cima da mesa esperava-nos um queijo fresco de mais de meio quilo, feito com leite de cabra nessa mesma manhã. Ao lado um pão de quilo, tudo tapado com uns guardanapos bordados a ponto-cruz. Abrimos uma garrafa de tinto e comemos quase tudo. Sabia bem.
Passámos a uma salinha ao lado. O Pedro deitou-se e eu, antes de me sentar num sofá velho e confortável, perguntei-lhe se queria alguma coisa. Sim, uns cobertores, por favor. Descalçou-se, tapou-se e deitou-se na cama onde costumavam dormir as suas filhas.
Fui buscar um copo e servi-me generosamente de um Rum Habana Club 7 Anos e acendi um charuto pequeno. O silêncio era total. Vagamente chegava uma música de chocalhos de cabra ou ovelha. Mas tudo longe, muito longe.
O meu amigo Pedro continuava de olhos fechados, mas antes de me ir deitar pude ver como a cara estava molhada de alguma lágrima fugitiva.
Na manhã seguinte, quando acordei, fui ver como estava o meu amigo. Não estava! Procurei, fui à varanda e daí vi-o num campo próximo. Vi como mastigava folhas de oliveira, como apanhava erva verde do chão e ia provando de tudo, como arregaçou as mangas e esfregou mãos e braços de terra escura e solta, vi como se lavou num regato (que neste Fevereiro levava água limpa, fria e saborosa). Quando toda a terra desapareceu, fez das mãos uma concha e lavou a cara. De certeza que teve frio, mas não tirou a água da cara ou das mãos. Sentou-se uma pedra e olhou longamente o regato, em silêncio, como para ouvir a música que a água tocava no início do seu longo caminho até ao rio Sever, depois o Tejo e finalmente o inacabável mar.
Voltou, com uma cara viva e molhada, quase feliz, e disse-me: «Já podemos voltar.» Eu não entendi. «E a tua reunião tão importante?»
«Já acabou. A reunião era comigo, com a minha terra, a minha água, o meu ar e o meu silêncio. Com o cheiro disto tudo. Já me encontrei comigo. Tinha tantas saudades minhas. Obrigado por me teres trazido, amigo.»
Arrumámos um pouco a casa, comemos o resto do queijo, fechámos a porta, escondemos a chave como era costume e partimos. Já no carro o meu amigo Pedro, começou a marcar um número. «Está? É o Manel Azinheirinha? Bom dia, sou eu. Podemos aquecer-nos com um ensopado de borrego, mas na versão “sem batatas”, pouco gorduroso e muito cheiroso? Óptimo, estaremos aí em Santiago do Escoural daqui a duas horas. Manel, vá abrindo uma garrafa de tinto, com dois ou três anos e que não nos arruinemos com o preço. Até logo.»
«Vês, ontem tu trataste de tudo hoje sou eu.»
Passamos por Marvão. Enchemos os olhos de mundo. O ar estava frio e transparente. Tudo respirava uma paz muito grande. O meu amigo Pedro começou a cantar baixinho uma das canções do seu admirado Joaquín Sabina:
...porque uma casa sem ti é uma emboscada/um corredor num comboio de madrugada/um labirinto/ sem luz nem vinho tinto/um véu de alcatrão numa mirada.
...porque uma casa sem ti é um escritório/ um telefone a arder numa cabine/ uma palmeira/ num museu de cera/ um êxodo de escuras andorinhas.
De novo o silêncio, mas já não era o silêncio triste. Disse-lhe: «Pedro, respeito os teus problemas, sei que devem pesar, sei que muitas vezes sentes que não há nada mais importante do que essa dor indefinida, mas também penso que o fundamental é lutar, sobretudo agora em que tudo o que é feio e mau, manda e corrompe impunemente.»
Não pensou muito o meu amigo Pedro: «tens razão. Vamos lutar, com a beleza e a alegria do nosso lado.»