O sangue
Com razão ou sem ela, pareceu-me que este ano o 25 de Abril de 74, o próprio dia mas também os seus antecedentes e os tempos que mais imediatamente se lhe seguiram, foram mais falados na televisão portuguesa do que tem sido costume. Entenda-se que não fiz medições a cronómetro ou próximas disso, que se trata de uma avaliação porventura condicionada por uma expectativa céptica quanto ao que por aí viria ou talvez pela surpresa positiva que foi o visível empenhamento da RTP Memória em comemorar Abril com dignidade. É certo que esta quase especialização do RTP Memória não apenas na celebração do 25 mas também em alguma denúncia do 24 pode corresponder à presunção de que isso de Abril é tema para os territórios da mera recordação, matéria para agrado dos velhotes que presumivelmente são os frequentadores maioritários daquele canal. Estando as coisas como estão quer na RTP quer fora dela, uma suspeita deste género não parece inteiramente absurda ainda que possa ser excessiva, e quanto a este ponto é esperável que a ele voltemos quando (ou se) proximamente nos referirmos ao modo como decorreu o «Prós e Contras» da passada segunda-feira, aquele em que um punhadinho de convidados sabiamente seleccionados vieram explicar-nos se a Revolução de Abril falhou ou não. Voltando ao que nos nossos televisores se viu e ouviu no passado dia 25, convém registar que a «1» nos deu, além da habitual reportagem directa da sessão solene havida na Assembleia da República, o programa «Vozes que Abril abriu» (aparentemente resultado da colaboração entre Júlio Isidro e Vasco Lourenço); que repetiu durante a tarde o filme «Capitães de Abril» e lá para depois da meia-noite iniciou a transmissão de uma série de seis episódios sobre Abril e os seus antecedentes. Que, ao longo do dia, a «2» falou longamente do Tarrafal, de Lopes-Graça, de José Afonso, de Carlos Paredes, de Jorge de Sena, de Sophia, e que terminou a emissão com a transmissão de dois filmes baseados em livros de José Rodrigues Miguéis e Cardoso Pires. Quanto às coberturas noticiosas das manifestações havidas nesse dia é que foi pior, mas não podemos ser demasiado ambiciosos ou sonhadores. E das operadoras privadas, também só por sonho se poderia esperar mais. Repito a frase: estando as coisas como estão.
Uma simpática fórmulaz
Aconteceu-me, porém, que uma breve expressão ouvida por duas vezes ao longo do dia, fórmula habitualmente usada por esta altura e que por isso não devia surpreender-me ou chocar-me, desta vez ficou a mordiscar-me durante largo tempo, tão largo que ainda agora lhe sinto a mordedura ainda não cicatrizada. Foi ela, a propósito do derrube da ditadura fascista, que foi uma revolução «sem derramamento de sangue».
A gente ouve aquilo e não dá por nada de especial, até porque soa a verdade, porque até corresponde a um sentimento de justificado orgulho por ter o sabor de um cumprimento dirigido à consensualidade antifascista que em 25 de Abril dominou largamente sectores civis e militares. Porém, pode acontecer que fiquemos a pensar e que, pensando, descubramos que não é verdade, que o derrube do fascismo custou sangue derramado, e não tão pouco quanto pode parecer. Já nem falo dos anos de sangue a derramar-se em África, sangue vermelho de brancos e sangue vermelho de negros, contribuição enorme e terrível para que a ditadura não tivesse quem a quisesse defender: falo, é claro, do sangue durante décadas derramado nos antros prisionais do fascismo, no Tarrafal e em São Nicolau, nos campos do Alentejo e noutros lugares do País, na então Rua da Creche em Lisboa e também algures em Espanha, perto de Villanueva Del Fresno. Falo, já agora e não apenas por uma questão de rigor, nas últimas vítimas da PIDE abatidas a tiro das janelas da sinistra sede da polícia política. De todo este sangue, e do mais que não me ocorre ou que ignoro, resulta um caudal de sangue vertido para que o fascismo fosse vencido. É o sangue que não podemos esquecer, maneira quase amável de dizer que não podemos trair, e que a simpática mas enganadora expressão «sem derramamento de sangue» tende a suprimir nos arquivos da nossa memória. É o sangue que nas páginas deste jornal, cuja feitura também por vezes foi paga com sangue, teria de ser lembrado.
Uma simpática fórmulaz
Aconteceu-me, porém, que uma breve expressão ouvida por duas vezes ao longo do dia, fórmula habitualmente usada por esta altura e que por isso não devia surpreender-me ou chocar-me, desta vez ficou a mordiscar-me durante largo tempo, tão largo que ainda agora lhe sinto a mordedura ainda não cicatrizada. Foi ela, a propósito do derrube da ditadura fascista, que foi uma revolução «sem derramamento de sangue».
A gente ouve aquilo e não dá por nada de especial, até porque soa a verdade, porque até corresponde a um sentimento de justificado orgulho por ter o sabor de um cumprimento dirigido à consensualidade antifascista que em 25 de Abril dominou largamente sectores civis e militares. Porém, pode acontecer que fiquemos a pensar e que, pensando, descubramos que não é verdade, que o derrube do fascismo custou sangue derramado, e não tão pouco quanto pode parecer. Já nem falo dos anos de sangue a derramar-se em África, sangue vermelho de brancos e sangue vermelho de negros, contribuição enorme e terrível para que a ditadura não tivesse quem a quisesse defender: falo, é claro, do sangue durante décadas derramado nos antros prisionais do fascismo, no Tarrafal e em São Nicolau, nos campos do Alentejo e noutros lugares do País, na então Rua da Creche em Lisboa e também algures em Espanha, perto de Villanueva Del Fresno. Falo, já agora e não apenas por uma questão de rigor, nas últimas vítimas da PIDE abatidas a tiro das janelas da sinistra sede da polícia política. De todo este sangue, e do mais que não me ocorre ou que ignoro, resulta um caudal de sangue vertido para que o fascismo fosse vencido. É o sangue que não podemos esquecer, maneira quase amável de dizer que não podemos trair, e que a simpática mas enganadora expressão «sem derramamento de sangue» tende a suprimir nos arquivos da nossa memória. É o sangue que nas páginas deste jornal, cuja feitura também por vezes foi paga com sangue, teria de ser lembrado.