A dúzia começa mal
Ler é preciso. Creio-o eu e, felizmente, crêem-no muitos mais e dos melhores, pelo que me sinto muito bem acompanhado. Ler é preciso por várias razões: para entender o mundo e os outros, para nos entendermos a nós próprios, para desse modo limitarmos a natural propensão para dizer os disparates que a ignorância muito favorece. Também porque, imersos em sociedades dominadas por imagens, acontece que uma imagem pode mentir mais que mil palavras, como em tempos aprendi com o professor José Rebelo, e convém que nos libertemos pelo menos um pouco do opressivo assédio das imagens. Parece-me, pois, que ler é preciso, mas parece-me também que a Radiotelevisão Portuguesa, a do serviço público, não é da mesma opinião, ou pelo menos não coloca a necessidade da leitura no mesmo lugar cimeiro em que a coloco eu e a colocam muitos mais. Entenda-se que quando falo de leitura estou a falar da leitura de livros e não da leitura do Público, da imprensa dita cor-de-rosa ou do correio electrónico. Ora, é sabido que a RTP não trata particularmente bem os programas que de um modo ou de outro podem estimular a leitura de livros, acontecendo mesmo que os trata geralmente muito mal, colocando-os em canal e horários de audiência mais escassa. De facto, arruma esses programas um pouco como em nossas casas arrumamos os medicamentos e produtos equiparáveis que não queremos deixar ao alcance fácil das crianças: em prateleiras altas, em gavetas pouco acessíveis. Cuidamos assim de prevenir riscos, mas não sei ao certo que riscos descobrirá a RTP nos livros e na leitura, embora possa ter algumas suspeitas quanto a este assunto.
Só para defuntos
É neste quadro que se torna entendível que a RTP, tendo cedido à tentação de imitar o bom exemplo constituído por uma série estrangeira e decidido transmitir doze programas acerca de doze grandes obras da literatura portuguesa, tenha tido o cuidado de remeter a série para a «2», canal pouco frequentado. Assim fica garantido que só por quase miraculoso acaso o gosto da leitura alastre a quem não tenha o hábito de ler, pois é mais ou menos adquirido que, tendo ganho a aliás pouco merecida fama de «canal cultural», a «2» é sobretudo escolhida por velhinhos de corpo e/ou de espírito que ainda ligam a essas coisas da leitura de bons livros, da audição de boa música, de velharias assim. Acontece, porém, que o dever de uma estação de serviço público em terra de gente pouco dada a leituras seria a de tentar suscitar o prazer de ler no maior número possível de telespectadores, e por essa razão fundamental se vê que a colocação do programa, «Grandes Livros» de seu título, em canal frequentado por quem menos precise de estímulos para a leitura, é uma eficaz maneira de a série começar mal. A menos que a transmissão da série não queira ter nada a ver com a transmissão do gosto de ler, com esse bom contágio capaz de tornar as pessoas mais completas e mais felizes, e vise apenas a exibição de uma espécie de kapacidade kultural que não aproveita a quase ninguém mas enfeita muito. Sendo essa a intenção principal ou mesmo exclusiva, é forçoso admitir que o programa inicial foi condizente com o objectivo. Mas é duvidoso que, esgotados os cinquenta minutos de duração do programa, tenham sido muitos os espectadores tomados do desejo de ler «Os Maias», obra escolhida para tema da estreia, apesar de um indesmentível esforço da realização para que aquilo não ficasse parecido com uma palestra ilustrada. Carlos Reis e Isabel Pires de Lima provaram o que deles era conhecido, isto é, que são sabedores e competentes a escarafunchar a vida de Eça e o clima cultural dos finais do século XIX, mas não a despertar a apetência pela leitura do livro. Aliás, é discutível a escolha de «Os Maias», obra de conhecimento obrigatório por força de programas escolares, para estreia da série, tal como é também discutível e mesmo eventualmente grave que entre os doze autores seleccionados não estejam Aquilino nem Manuel da Fonseca, nem Soeiro Pereira Gomes, nem José Rodrigues Miguéis. Não decerto porque os escolhidos sejam menores, mas porque os seus livros que a série abordará podem não suscitar facilmente o apetite da leitura, por muito que sirvam para permitir a exibição de sabedorias. Finalmente, registe-se que a estratégia de apenas incluir obras de escritores já falecidos permite a exclusão de José Saramago. E que, quanto a isso e sendo assim, o que mais desejo é que a exclusão se mantenha por muitos mais anos.
Só para defuntos
É neste quadro que se torna entendível que a RTP, tendo cedido à tentação de imitar o bom exemplo constituído por uma série estrangeira e decidido transmitir doze programas acerca de doze grandes obras da literatura portuguesa, tenha tido o cuidado de remeter a série para a «2», canal pouco frequentado. Assim fica garantido que só por quase miraculoso acaso o gosto da leitura alastre a quem não tenha o hábito de ler, pois é mais ou menos adquirido que, tendo ganho a aliás pouco merecida fama de «canal cultural», a «2» é sobretudo escolhida por velhinhos de corpo e/ou de espírito que ainda ligam a essas coisas da leitura de bons livros, da audição de boa música, de velharias assim. Acontece, porém, que o dever de uma estação de serviço público em terra de gente pouco dada a leituras seria a de tentar suscitar o prazer de ler no maior número possível de telespectadores, e por essa razão fundamental se vê que a colocação do programa, «Grandes Livros» de seu título, em canal frequentado por quem menos precise de estímulos para a leitura, é uma eficaz maneira de a série começar mal. A menos que a transmissão da série não queira ter nada a ver com a transmissão do gosto de ler, com esse bom contágio capaz de tornar as pessoas mais completas e mais felizes, e vise apenas a exibição de uma espécie de kapacidade kultural que não aproveita a quase ninguém mas enfeita muito. Sendo essa a intenção principal ou mesmo exclusiva, é forçoso admitir que o programa inicial foi condizente com o objectivo. Mas é duvidoso que, esgotados os cinquenta minutos de duração do programa, tenham sido muitos os espectadores tomados do desejo de ler «Os Maias», obra escolhida para tema da estreia, apesar de um indesmentível esforço da realização para que aquilo não ficasse parecido com uma palestra ilustrada. Carlos Reis e Isabel Pires de Lima provaram o que deles era conhecido, isto é, que são sabedores e competentes a escarafunchar a vida de Eça e o clima cultural dos finais do século XIX, mas não a despertar a apetência pela leitura do livro. Aliás, é discutível a escolha de «Os Maias», obra de conhecimento obrigatório por força de programas escolares, para estreia da série, tal como é também discutível e mesmo eventualmente grave que entre os doze autores seleccionados não estejam Aquilino nem Manuel da Fonseca, nem Soeiro Pereira Gomes, nem José Rodrigues Miguéis. Não decerto porque os escolhidos sejam menores, mas porque os seus livros que a série abordará podem não suscitar facilmente o apetite da leitura, por muito que sirvam para permitir a exibição de sabedorias. Finalmente, registe-se que a estratégia de apenas incluir obras de escritores já falecidos permite a exclusão de José Saramago. E que, quanto a isso e sendo assim, o que mais desejo é que a exclusão se mantenha por muitos mais anos.