A pesada herança do sionismo genocida (*)
A presidência de Barack Obama está a ser festejada no Ocidente como o início de uma nova era no âmbito de uma gigantesca campanha mediática. Esse entusiasmo é revelador da profunda crise de civilização que a humanidade atravessa, ameaçada pela barbárie de um sistema de poder monstruoso.
Primeiro absurdo: os EUA, país do qual viria a salvação para a crise global em desenvolvimento, são os grandes responsáveis pelo caos que se instalou no mundo.
Segundo absurdo: as declarações do novo presidente e as primeiras medidas por ele tomadas justificam o temor de que, embora com outra linguagem e outro estilo, os EUA persistam no fundamental fiéis a uma estratégia imperialista de dominação universal.
No domínio da política exterior – para me limitar a temas relacionados com este Fórum – Obama afirma-se disposto a intensificar a guerra de agressão contra o povo do Afeganistão, ameaça o Irão e identifica no Estado de Israel o seu grande aliado no Médio Oriente.
Nomeou para chefe do seu gabinete na Casa Branca Rahm Emmanuel, um sionista fanático, mantém à frente do Pentágono Robert Gates, outro sionista, e definiu Jerusalém como «una e indivisível».
Até hoje não teve uma palavra de crítica para as repetidas declarações de altos responsáveis israelenses, civis e militares, que ameaçam o Líbano com uma nova agressão militar, e absteve-se de comentar a «tese» da ministra Tzipi Livni sobre a conveniência de expulsar de Israel todos os palestinos (1 400 000) que ali vivem. Não condenou o genocídio de Gaza, assumindo uma atitude ambígua perante a agressão sionista.
***
Proponho-me falar aqui, neste workshop, de um tema sempre actual.
Todos nós estamos conscientes de que o genocídio que atinge o povo da Palestina é uma mancha repugnante na história da humanidade.
Mas é muito menos transparente para centenas de milhões de pessoas progressistas que a criação do Estado de Israel assenta sobre mitos que deturpam a história.
A difusão desses mitos está na origem de situações e crimes que tornaram possível a repetição no início deste século de uma monstruosidade. Apoiado pelos EUA, o Estado construído por vítimas do holocausto concebido pelo Reich nazi executa na Palestina um plano cujo objectivo é o extermínio de um povo. O bombardeamento e a invasão de Gaza confirmam que o Estado sionista de Israel pratica uma política exterior neonazi.
Uma pirâmide de mentiras sinaliza a estrada do tempo que conduziu a chacinas como as de Sabra, Shatila e Jenin e à construção actual do muro israelense.
Na base dessas mentiras está o mito básico, aquele que estimulou o regresso dos judeus à «Terra Prometida» dos antepassados.
A esmagadora maioria dos judeus que vivem hoje no Estado de Israel não descendem do povo que invocam. A aventura da diáspora judaica, suporte das teses de Theodor Herzl sobre o «regresso à pátria perdida», foi montada sobre uma inverdade histórica.
Jerusalém era uma pequena cidade quando, por duas vezes, a sua população maioritariamente de judeus, foi massacrada e expulsa pelos romanos. Não eram mais do que uns milhares os que nela sobreviveram após a revolta esmagada por Tito no ano 70. Adriano, no século II, arrasou totalmente Jerusalém como castigo da nova insurreição. Os judeus expulsos após a mortandade do cerco foram poucos.
Não há milagres na multiplicação dos seres humanos. Olhamos hoje para os askenaze, vindos da Alemanha, da Polónia, da Rússia, da Europa Ocidental, e para os sefardim, chegados de países muçulmanos, e tudo nos seus traços fisionómicos difere, a revelar origens étnicas muito diferentes. Nuns e noutros, a percentagem de sangue judaico é mínima. Os primeiros tratam aliás os segundos com sobranceria racista, considerando-os inferiores. Pior é ainda a discriminação relativa aos judeus negros da Etiópia e de outros países africanos.
É a religião e não o sangue que estabelece a ponte do judaísmo entre essas comunidades e a suposta pátria de origem.
Mas – pergunto – será hoje a religião o denominador comum aglutinador da nação que se diz descender de Abraão? A resposta é também negativa. Muitos judeus israelenses não praticam actualmente a religião hebraica e as suas convicções religiosas são débeis ou inexistentes.
A tradição, o culto dos antepassados e uma cultura condensada na Bíblia (o antigo Testamento) figuram nas raízes do sionismo e explicam a especificidade contraditória de um Estado confessional cujos filhos duvidam (uma parte) da própria existência de Deus.
É inquestionável que uma parcela importante dos antepassados dos actuais palestinos árabes chegaram à Palestina há uns 5000 anos, subindo da Península arábica, muito antes, portanto, da primeiras comunidades hebraicas. Eram, aliás, aparentados, como povos semitas oriundos de um tronco comum. Uns e outros assumiam-se como descendentes de Sem e falavam idiomas muito parecidos, que ainda hoje apresentam grandes afinidades.
Os primeiros povoadores palestinos fundiram-se rapidamente com algumas das tribos que encontraram na região. O processo de miscigenização dos palestinos foi tão complexo que a própria palavra Palestina deriva dos Filisteus, um povo descendente dos chamados Povos do Mar, invasores arianos, chegados da Grécia.
No século VII da Nossa Era, após a conquista árabe, a maioria da população que era então cristã, adoptou a religião e a cultura do Islão.
Os judeus da Palestina quase não se misturaram com outros povos.
Não recordarei aqui a história dos primitivos hebreus e as suas aventuras desde o Nilo ao Eufrates, com passagem pelo Vale do Jordão. Uma síntese muito interessante pode ser encontrada no livro de Ernesto Gomez Abascal, que foi embaixador de Cuba na Síria, na Jordânia e no Iraque (1).
O que me parece útil recordar é o facto de que a agressividade genocida do Estado de Israel tem um precedente na agressividade expansionista dos judeus vindos do Egipto. Eles afirmavam actuar por mandato divino, como «povo especial» do Senhor. Segundo o Antigo Testamento, Yahvé (Jeová) informou Moisés de que seria dos hebreus todo o território desde o deserto de Sinai até ao Mar e ao Eufrates, isto é a Palestina, o Líbano, a Síria e parte do Iraque, o hoje chamado Crescente fértil.
Como tentaram apossar-se de tão vasta e povoada região quando, sempre segundo a lenda, arrancaram do Egipto no século XIII antes da Nossa Era?
O livro de Josué iluminou-lhes o caminho:
«Quando tiverdes atravessado o Jordão e entrado pela terra de Canaã, afastai do vosso caminho todos os moradores do país e destruí todos os seus ídolos de pedra e todas as suas imagens fundidas e destruí todos os lugares elevados, expulsai os moradores da terra e residi nela porque eu vo-la dei para que seja vossa propriedade (cap 33, versículos 50 a 53). Porque tu és povo santo para Yahvé, o teu Deus. Yahvé, o teu Deus, escolheu-te como povo especial, mais do que a todos os povos que estão sobre a terra (cap 7,ver.6). E eles destruíram a fio de espada tudo o que havia na cidade; homens e mulheres, jovens e velhos, até os bois, as ovelhas e os burros» (cap.8 vers.24 e26 (…) Subiu logo Josué e todo Israel com ele de Eglon a Hebron e combateram esta (…) matou tudo o que tinha vida, como Yahvé, Deus de Israel, lhe tinha ordenado (cap.10,vers.34 e 40).
Como se verifica pela transcrição não faltam aos dirigentes do actual Estado de Israel fontes bíblicas de inspiração para os seus crimes. Afirmam teólogos sionistas que Yahveh era o Deus de um povo sem território e que naquela época quase todas as religiões incitavam à violência. Mas o argumento é historicamente inaceitável.
Hoje, quando no Ocidente está na moda caluniar o Islão e o seu Profeta, colando-lhe o rótulo de terroristas, é suficiente ler o Alcorão para tomar consciência de que a religião por ele pregada tem um conteúdo humanista. Não faz a apologia da violência, preconizando pelo contrário – tal como o Cristianismo, o Mazdeísmo e o Budismo – o diálogo pacífico entre os povos.
A agressividade actual dos governantes e militares israelenses não é portanto um fenómeno circunstancial. Tem raízes milenares.
O movimento sionista nasceu ideologicamente agressivo numa época em que contou com a simpatia da intelligentsia europeia e norte-americana, justamente indignada com o anti-semitismo que se manifestava nos repugnantes pogromes da Polónia e da Rússia.
Nos finais do século XIX, na Palestina, então submetida ao domínio turco, 91% da população eram palestinos. Os judeus, de imigração recente, não ultrapassavam 50 mil. Quase 99% das terras pertenciam a camponeses palestinos. Mas os pioneiros do sionismo já então projectavam o futuro Israel. Theodor Herzl no seu livro «O Estado Judaico», publicado em 1896, escreveu: «em Basileia fundei o Estado judaico (se hoje afirmasse isso em voz alta responderme-iam com uma gargalhada). Talvez dentro de cinco anos, mas certamente dentro de 50, toda a gente o saberá».
Em 1914, Chaim Weizman, que seria o primeiro presidente de Israel, escreveu nas suas Memórias: «Na actualidade somos um átomo, mas é razoável afirmar que se a Palestina cair na esfera da influência britânica e se a Grã-Bretanha incentivar o estabelecimento de um Estado judaico, então, como dependência britânica, podemos esperar ter ali dentro de 25 a 30 anos um milhão de judeus pelo menos, e eles se encarregarão de formar uma guarda eficaz para o Canal de Suez».
Weizman foi profético. O que não previu foi que ao decadente império britânico sucederia o império norte-americano e que o Estado de Israel, por ele imaginado, se transformaria no seu cão de guarda para todo o Médio Oriente.
Transcorridos sessenta anos sobre a partilha da Palestina, aprovada pela ONU, o Estado de Israel é uma realidade e a maior potencia militar da região. Os 5,4 milhões de judeus que vivem hoje no Estado judaico ali implantado não são colectivamente responsáveis pelas políticas que tornaram possível a sua formação, resultante de um facto colonial. Israel não pode ser apagado do mapa por mais monstruosos que sejam os crimes dos seus actuais dirigentes e daqueles que os precederam.
Mas a solidariedade com a Palestina árabe exige a desmontagem do edifício de mentiras históricas montado pelo sionismo com a aprovação do imperialismo na tentativa de justificar o injustificável.
Genocídios como os de Sabra, Shatila e Jenin e a última agressão vandálica ao povo do Líbano não foram tragédias ocasionais.
Nos últimos anos do Mandato Britânico as organizações terroristas israelenses Haganah, Irgun e Stern cometeram incontáveis crimes numa escalada de violência dirigida contra os árabes palestinos, ao tempo amplamente maioritários. Segundo o censo de 46, promovido nas vésperas da partilha, os árabes palestinos eram então 1 237 000 e os judeus apenas 608 000. E somente 8% das terras pertenciam aos segundos. Apesar disso, o Plano da Partilha, aprovado pela ONU, atribuiu ao futuro Estado judaico 56% da superfície da Palestina.
O que aconteceu depois foi trágico. Os israelenses ocuparam imediatamente pelas armas 75% do território, inviabilizando a criação prevista do Estado Palestino.
Quando a ONU tentou fiscalizar o cessar-fogo, a organização terrorista Stern assassinou em Jerusalém o conde Bernadotte, secretário-geral da Organização. Em tempo mínimo 400 mil palestinos foram expulsos das suas casas e terras.Quase 500 aldeias árabes foram arrasadas numa orgia de barbárie. Em poucas horas a Irgun massacrou 254 palestinos na aldeia de Deir Yassin. Esvaziar a Palestina de árabes através do terror foi o objectivo desses massacres. Anos depois, Menahem Begin, que foi primeiro-ministro, comentou assim a chacina que comandou pessoalmente: «O massacre não somente se justificou como, sem essa vitória, o Estado de Israel não existiria» (2).
Yossef Weitz, um destacado dirigente do Fundo Nacional Judaico, condensou o espírito dessa política numa sentença fascista: «Entre nós deve ficar transparente que não existe espaço para dois povos neste país (…) não há outro caminho que não seja a transferência dos árabes para os países vizinhos, a mudança de todos, nenhuma tribo deve permanecer aqui». (3)
A política de sucessivos governos de Israel demonstra que permaneceram fiéis a esse projecto.
Quatro guerras com estados vizinhos instalaram um clima de violência endémica na região desde a formação de Israel.
Uma Resolução da ONU, a 242, de 22 de Novembro de 1967, intimou Israel a devolver os territórios ocupados pela força das armas. Outra exigiu de Telavive o regresso dos refugiados (e seus descendentes) aos lugares de onde foram expulsos.
Israel ignorou-as. A posição de Telavive sobre essas questões está condensada num cínico comentário de Golda Meier: «Como vamos poder devolver os territórios ocupados? Não existe ninguém a quem devolver algo. Essa coisa a que chamam palestinos não existe» (4).
A história mais recente é melhor conhecida.
O Estado de Israel não renuncia ao cumprimento das profecias da Torah que apontam o caminho da barbárie para concretização do sonho de Eretz Israel, ou seja o Grande Israel. As tácticas e o discurso mudam, mas o objectivo de aniquilar a nação palestina mantém-se.
A I Intifada demonstrou claramente que o povo árabe da Palestina não renuncia ao direito de construir o seu próprio futuro como nação plenamente soberana no que resta – Gaza e a Cisjordania – dos territórios povoados pelos seus antepassados muitos séculos antes da chegada das primeiras tribos de judeus.
Mas cumprir os acordos por eles firmados nunca foi a intenção dos dirigentes de Israel.
Nem a imaginação de Sófocles ou a de Shakespeare concebeu tragédia comparável à que se abateu sobre as cidades e aldeias da Palestina. Na construção do muro podemos contemplar o rosto de um Estado neonazi.
James Petras encontra para a chacina de Jenin analogias com a destruição do gueto de Varsóvia pelas SS de Hitler. Para José Saramago a aldeia palestiniana aniquilada traz à memória Aushwitz, paradigma da loucura assassina nazi.
A mim faz-me recordar ambos.
Creio enunciar uma evidência ao afirmar que em cada um de nós, reunidos em Beirute, a indignação provocada pela estratégia genocida que atinge a nação palestina é acentuada pela consciência de que ela não seria possível sem a cumplicidade e o apoio do imperialismo estado-unidense.
Os povos condenam com firmeza os crimes de Israel, mas a sua política monstruosa prossegue, financiada por Washington. A ajuda norte-americana ao Estado assassino ultrapassa os 3 mil milhões de dólares anuais.
Não devemos esquecer que a passividade dos governos da União Europeia perante os crimes do Estado de Israel é outra indignidade. A sua atitude, sobretudo a das grandes potências, é de submissão à estratégia dos EUA para a região. E nada indica que essa estratégia, no fundamental, seja alterada pelo presidente Barack Obama.
A íntima aliança existente entre a extrema direita israelense e os Estados imperialistas contribui para evidenciar o significado internacionalista e humanista da luta heróica do povo árabe da Palestina. Essa pequena e valente nação, ao resistir com firmeza homérica à tentativa de holocausto contra ela executada pelos descendentes das vítimas do holocausto judeu da II Guerra Mundial – essa Palestina de raízes milenárias, assume hoje a defesa de valores eternos da condição humana.
Amigos e Camaradas:
A Palestina resiste, o seu povo sobrevive e multiplica-se sob a agressão permanente do Estado neofascista israelense. Segundo um estudo da Universidade Judaica de Haifa, no ano 2020 a população total de Israel, de Gaza e da Cisjordania terá ultrapassado os 12 milhões. Desse total mais de metade serão árabes palestinos. Da maioria que são hoje na Palestina histórica, os israelenses terão passado a minoria.
Ao reafirmar neste Fórum a solidariedade dos portugueses progressistas com o povo épico da Palestina expresso uma confiança inabalável na vitória final desse povo que se bate hoje pela humanidade inteira.
A Palestina vencerá!
________________________
* Intervenção do Fórum de Beirute, Janeiro de 2009
Notas
1. Ernesto Gomez Abacal, «Palestina Crucificada», Editora Politica, La Habana, Abril de 2002
2. Idem, pág. 203
3. Idem, pág. 32
4. Idem, pág. 54
Segundo absurdo: as declarações do novo presidente e as primeiras medidas por ele tomadas justificam o temor de que, embora com outra linguagem e outro estilo, os EUA persistam no fundamental fiéis a uma estratégia imperialista de dominação universal.
No domínio da política exterior – para me limitar a temas relacionados com este Fórum – Obama afirma-se disposto a intensificar a guerra de agressão contra o povo do Afeganistão, ameaça o Irão e identifica no Estado de Israel o seu grande aliado no Médio Oriente.
Nomeou para chefe do seu gabinete na Casa Branca Rahm Emmanuel, um sionista fanático, mantém à frente do Pentágono Robert Gates, outro sionista, e definiu Jerusalém como «una e indivisível».
Até hoje não teve uma palavra de crítica para as repetidas declarações de altos responsáveis israelenses, civis e militares, que ameaçam o Líbano com uma nova agressão militar, e absteve-se de comentar a «tese» da ministra Tzipi Livni sobre a conveniência de expulsar de Israel todos os palestinos (1 400 000) que ali vivem. Não condenou o genocídio de Gaza, assumindo uma atitude ambígua perante a agressão sionista.
Proponho-me falar aqui, neste workshop, de um tema sempre actual.
Todos nós estamos conscientes de que o genocídio que atinge o povo da Palestina é uma mancha repugnante na história da humanidade.
Mas é muito menos transparente para centenas de milhões de pessoas progressistas que a criação do Estado de Israel assenta sobre mitos que deturpam a história.
A difusão desses mitos está na origem de situações e crimes que tornaram possível a repetição no início deste século de uma monstruosidade. Apoiado pelos EUA, o Estado construído por vítimas do holocausto concebido pelo Reich nazi executa na Palestina um plano cujo objectivo é o extermínio de um povo. O bombardeamento e a invasão de Gaza confirmam que o Estado sionista de Israel pratica uma política exterior neonazi.
Uma pirâmide de mentiras sinaliza a estrada do tempo que conduziu a chacinas como as de Sabra, Shatila e Jenin e à construção actual do muro israelense.
Na base dessas mentiras está o mito básico, aquele que estimulou o regresso dos judeus à «Terra Prometida» dos antepassados.
A esmagadora maioria dos judeus que vivem hoje no Estado de Israel não descendem do povo que invocam. A aventura da diáspora judaica, suporte das teses de Theodor Herzl sobre o «regresso à pátria perdida», foi montada sobre uma inverdade histórica.
Jerusalém era uma pequena cidade quando, por duas vezes, a sua população maioritariamente de judeus, foi massacrada e expulsa pelos romanos. Não eram mais do que uns milhares os que nela sobreviveram após a revolta esmagada por Tito no ano 70. Adriano, no século II, arrasou totalmente Jerusalém como castigo da nova insurreição. Os judeus expulsos após a mortandade do cerco foram poucos.
Não há milagres na multiplicação dos seres humanos. Olhamos hoje para os askenaze, vindos da Alemanha, da Polónia, da Rússia, da Europa Ocidental, e para os sefardim, chegados de países muçulmanos, e tudo nos seus traços fisionómicos difere, a revelar origens étnicas muito diferentes. Nuns e noutros, a percentagem de sangue judaico é mínima. Os primeiros tratam aliás os segundos com sobranceria racista, considerando-os inferiores. Pior é ainda a discriminação relativa aos judeus negros da Etiópia e de outros países africanos.
É a religião e não o sangue que estabelece a ponte do judaísmo entre essas comunidades e a suposta pátria de origem.
Mas – pergunto – será hoje a religião o denominador comum aglutinador da nação que se diz descender de Abraão? A resposta é também negativa. Muitos judeus israelenses não praticam actualmente a religião hebraica e as suas convicções religiosas são débeis ou inexistentes.
A tradição, o culto dos antepassados e uma cultura condensada na Bíblia (o antigo Testamento) figuram nas raízes do sionismo e explicam a especificidade contraditória de um Estado confessional cujos filhos duvidam (uma parte) da própria existência de Deus.
É inquestionável que uma parcela importante dos antepassados dos actuais palestinos árabes chegaram à Palestina há uns 5000 anos, subindo da Península arábica, muito antes, portanto, da primeiras comunidades hebraicas. Eram, aliás, aparentados, como povos semitas oriundos de um tronco comum. Uns e outros assumiam-se como descendentes de Sem e falavam idiomas muito parecidos, que ainda hoje apresentam grandes afinidades.
Os primeiros povoadores palestinos fundiram-se rapidamente com algumas das tribos que encontraram na região. O processo de miscigenização dos palestinos foi tão complexo que a própria palavra Palestina deriva dos Filisteus, um povo descendente dos chamados Povos do Mar, invasores arianos, chegados da Grécia.
No século VII da Nossa Era, após a conquista árabe, a maioria da população que era então cristã, adoptou a religião e a cultura do Islão.
Os judeus da Palestina quase não se misturaram com outros povos.
Não recordarei aqui a história dos primitivos hebreus e as suas aventuras desde o Nilo ao Eufrates, com passagem pelo Vale do Jordão. Uma síntese muito interessante pode ser encontrada no livro de Ernesto Gomez Abascal, que foi embaixador de Cuba na Síria, na Jordânia e no Iraque (1).
O que me parece útil recordar é o facto de que a agressividade genocida do Estado de Israel tem um precedente na agressividade expansionista dos judeus vindos do Egipto. Eles afirmavam actuar por mandato divino, como «povo especial» do Senhor. Segundo o Antigo Testamento, Yahvé (Jeová) informou Moisés de que seria dos hebreus todo o território desde o deserto de Sinai até ao Mar e ao Eufrates, isto é a Palestina, o Líbano, a Síria e parte do Iraque, o hoje chamado Crescente fértil.
Como tentaram apossar-se de tão vasta e povoada região quando, sempre segundo a lenda, arrancaram do Egipto no século XIII antes da Nossa Era?
O livro de Josué iluminou-lhes o caminho:
«Quando tiverdes atravessado o Jordão e entrado pela terra de Canaã, afastai do vosso caminho todos os moradores do país e destruí todos os seus ídolos de pedra e todas as suas imagens fundidas e destruí todos os lugares elevados, expulsai os moradores da terra e residi nela porque eu vo-la dei para que seja vossa propriedade (cap 33, versículos 50 a 53). Porque tu és povo santo para Yahvé, o teu Deus. Yahvé, o teu Deus, escolheu-te como povo especial, mais do que a todos os povos que estão sobre a terra (cap 7,ver.6). E eles destruíram a fio de espada tudo o que havia na cidade; homens e mulheres, jovens e velhos, até os bois, as ovelhas e os burros» (cap.8 vers.24 e26 (…) Subiu logo Josué e todo Israel com ele de Eglon a Hebron e combateram esta (…) matou tudo o que tinha vida, como Yahvé, Deus de Israel, lhe tinha ordenado (cap.10,vers.34 e 40).
Como se verifica pela transcrição não faltam aos dirigentes do actual Estado de Israel fontes bíblicas de inspiração para os seus crimes. Afirmam teólogos sionistas que Yahveh era o Deus de um povo sem território e que naquela época quase todas as religiões incitavam à violência. Mas o argumento é historicamente inaceitável.
Hoje, quando no Ocidente está na moda caluniar o Islão e o seu Profeta, colando-lhe o rótulo de terroristas, é suficiente ler o Alcorão para tomar consciência de que a religião por ele pregada tem um conteúdo humanista. Não faz a apologia da violência, preconizando pelo contrário – tal como o Cristianismo, o Mazdeísmo e o Budismo – o diálogo pacífico entre os povos.
A agressividade actual dos governantes e militares israelenses não é portanto um fenómeno circunstancial. Tem raízes milenares.
O movimento sionista nasceu ideologicamente agressivo numa época em que contou com a simpatia da intelligentsia europeia e norte-americana, justamente indignada com o anti-semitismo que se manifestava nos repugnantes pogromes da Polónia e da Rússia.
Nos finais do século XIX, na Palestina, então submetida ao domínio turco, 91% da população eram palestinos. Os judeus, de imigração recente, não ultrapassavam 50 mil. Quase 99% das terras pertenciam a camponeses palestinos. Mas os pioneiros do sionismo já então projectavam o futuro Israel. Theodor Herzl no seu livro «O Estado Judaico», publicado em 1896, escreveu: «em Basileia fundei o Estado judaico (se hoje afirmasse isso em voz alta responderme-iam com uma gargalhada). Talvez dentro de cinco anos, mas certamente dentro de 50, toda a gente o saberá».
Em 1914, Chaim Weizman, que seria o primeiro presidente de Israel, escreveu nas suas Memórias: «Na actualidade somos um átomo, mas é razoável afirmar que se a Palestina cair na esfera da influência britânica e se a Grã-Bretanha incentivar o estabelecimento de um Estado judaico, então, como dependência britânica, podemos esperar ter ali dentro de 25 a 30 anos um milhão de judeus pelo menos, e eles se encarregarão de formar uma guarda eficaz para o Canal de Suez».
Weizman foi profético. O que não previu foi que ao decadente império britânico sucederia o império norte-americano e que o Estado de Israel, por ele imaginado, se transformaria no seu cão de guarda para todo o Médio Oriente.
Transcorridos sessenta anos sobre a partilha da Palestina, aprovada pela ONU, o Estado de Israel é uma realidade e a maior potencia militar da região. Os 5,4 milhões de judeus que vivem hoje no Estado judaico ali implantado não são colectivamente responsáveis pelas políticas que tornaram possível a sua formação, resultante de um facto colonial. Israel não pode ser apagado do mapa por mais monstruosos que sejam os crimes dos seus actuais dirigentes e daqueles que os precederam.
Mas a solidariedade com a Palestina árabe exige a desmontagem do edifício de mentiras históricas montado pelo sionismo com a aprovação do imperialismo na tentativa de justificar o injustificável.
Genocídios como os de Sabra, Shatila e Jenin e a última agressão vandálica ao povo do Líbano não foram tragédias ocasionais.
Nos últimos anos do Mandato Britânico as organizações terroristas israelenses Haganah, Irgun e Stern cometeram incontáveis crimes numa escalada de violência dirigida contra os árabes palestinos, ao tempo amplamente maioritários. Segundo o censo de 46, promovido nas vésperas da partilha, os árabes palestinos eram então 1 237 000 e os judeus apenas 608 000. E somente 8% das terras pertenciam aos segundos. Apesar disso, o Plano da Partilha, aprovado pela ONU, atribuiu ao futuro Estado judaico 56% da superfície da Palestina.
O que aconteceu depois foi trágico. Os israelenses ocuparam imediatamente pelas armas 75% do território, inviabilizando a criação prevista do Estado Palestino.
Quando a ONU tentou fiscalizar o cessar-fogo, a organização terrorista Stern assassinou em Jerusalém o conde Bernadotte, secretário-geral da Organização. Em tempo mínimo 400 mil palestinos foram expulsos das suas casas e terras.Quase 500 aldeias árabes foram arrasadas numa orgia de barbárie. Em poucas horas a Irgun massacrou 254 palestinos na aldeia de Deir Yassin. Esvaziar a Palestina de árabes através do terror foi o objectivo desses massacres. Anos depois, Menahem Begin, que foi primeiro-ministro, comentou assim a chacina que comandou pessoalmente: «O massacre não somente se justificou como, sem essa vitória, o Estado de Israel não existiria» (2).
Yossef Weitz, um destacado dirigente do Fundo Nacional Judaico, condensou o espírito dessa política numa sentença fascista: «Entre nós deve ficar transparente que não existe espaço para dois povos neste país (…) não há outro caminho que não seja a transferência dos árabes para os países vizinhos, a mudança de todos, nenhuma tribo deve permanecer aqui». (3)
A política de sucessivos governos de Israel demonstra que permaneceram fiéis a esse projecto.
Quatro guerras com estados vizinhos instalaram um clima de violência endémica na região desde a formação de Israel.
Uma Resolução da ONU, a 242, de 22 de Novembro de 1967, intimou Israel a devolver os territórios ocupados pela força das armas. Outra exigiu de Telavive o regresso dos refugiados (e seus descendentes) aos lugares de onde foram expulsos.
Israel ignorou-as. A posição de Telavive sobre essas questões está condensada num cínico comentário de Golda Meier: «Como vamos poder devolver os territórios ocupados? Não existe ninguém a quem devolver algo. Essa coisa a que chamam palestinos não existe» (4).
A história mais recente é melhor conhecida.
O Estado de Israel não renuncia ao cumprimento das profecias da Torah que apontam o caminho da barbárie para concretização do sonho de Eretz Israel, ou seja o Grande Israel. As tácticas e o discurso mudam, mas o objectivo de aniquilar a nação palestina mantém-se.
A I Intifada demonstrou claramente que o povo árabe da Palestina não renuncia ao direito de construir o seu próprio futuro como nação plenamente soberana no que resta – Gaza e a Cisjordania – dos territórios povoados pelos seus antepassados muitos séculos antes da chegada das primeiras tribos de judeus.
Mas cumprir os acordos por eles firmados nunca foi a intenção dos dirigentes de Israel.
Nem a imaginação de Sófocles ou a de Shakespeare concebeu tragédia comparável à que se abateu sobre as cidades e aldeias da Palestina. Na construção do muro podemos contemplar o rosto de um Estado neonazi.
James Petras encontra para a chacina de Jenin analogias com a destruição do gueto de Varsóvia pelas SS de Hitler. Para José Saramago a aldeia palestiniana aniquilada traz à memória Aushwitz, paradigma da loucura assassina nazi.
A mim faz-me recordar ambos.
Creio enunciar uma evidência ao afirmar que em cada um de nós, reunidos em Beirute, a indignação provocada pela estratégia genocida que atinge a nação palestina é acentuada pela consciência de que ela não seria possível sem a cumplicidade e o apoio do imperialismo estado-unidense.
Os povos condenam com firmeza os crimes de Israel, mas a sua política monstruosa prossegue, financiada por Washington. A ajuda norte-americana ao Estado assassino ultrapassa os 3 mil milhões de dólares anuais.
Não devemos esquecer que a passividade dos governos da União Europeia perante os crimes do Estado de Israel é outra indignidade. A sua atitude, sobretudo a das grandes potências, é de submissão à estratégia dos EUA para a região. E nada indica que essa estratégia, no fundamental, seja alterada pelo presidente Barack Obama.
A íntima aliança existente entre a extrema direita israelense e os Estados imperialistas contribui para evidenciar o significado internacionalista e humanista da luta heróica do povo árabe da Palestina. Essa pequena e valente nação, ao resistir com firmeza homérica à tentativa de holocausto contra ela executada pelos descendentes das vítimas do holocausto judeu da II Guerra Mundial – essa Palestina de raízes milenárias, assume hoje a defesa de valores eternos da condição humana.
Amigos e Camaradas:
A Palestina resiste, o seu povo sobrevive e multiplica-se sob a agressão permanente do Estado neofascista israelense. Segundo um estudo da Universidade Judaica de Haifa, no ano 2020 a população total de Israel, de Gaza e da Cisjordania terá ultrapassado os 12 milhões. Desse total mais de metade serão árabes palestinos. Da maioria que são hoje na Palestina histórica, os israelenses terão passado a minoria.
Ao reafirmar neste Fórum a solidariedade dos portugueses progressistas com o povo épico da Palestina expresso uma confiança inabalável na vitória final desse povo que se bate hoje pela humanidade inteira.
A Palestina vencerá!
________________________
* Intervenção do Fórum de Beirute, Janeiro de 2009
Notas
1. Ernesto Gomez Abacal, «Palestina Crucificada», Editora Politica, La Habana, Abril de 2002
2. Idem, pág. 203
3. Idem, pág. 32
4. Idem, pág. 54