O escorpião
A gente liga o televisor, escolhe um qualquer dos noticiários disponíveis, e inevitavelmente ouve falar da crise. É natural, ela está aí, quase certamente ainda não na sua máxima força mas já a ter consequências graves; é, enfim, notícia todos os dias. Mas há ainda outro motivo para que os telenoticiários não deixem de a referir e o façam com uma ênfase que por vezes parece ter algum remoto travo de prazer: é que a crise é uma desgraça, digamos assim, e os noticiários da televisão são louquinhos por desgraças, fazem delas o seu pitéu predilecto. E até se percebe porquê: é que as desgraças é que suscitam no largo público a pulsão que o faz acorrer aos media para saber notícias, como aconteceram, como porventura vão continuar, ao passo que os horizontes tranquilos não remetem para essa avidez de informações. É claro que a televisão teria outros caminhos e outras prioridades se quisesse tê-las, se não escolhesse o mais fácil e o que provavelmente lhe é mais lucrativo, mas acontece que, como bem se sabe, há muito tempo que a TV abandonou a sua inicial vocação de utilidade pública para passar a ser negócio, e negócio com pelo menos dois tipos de dividendos: os que se exprimem em números e os que, menos óbvios mas mais importantes, correspondem à manipulação dos públicos. Ainda há pouco tempo, o Rádio Clube Português usava uma frase de promoção publicitária que me parecia de preciosa lucidez e que infelizmente deixei de ouvir: qualquer coisa como «O que Você pensa começa no que ouve». Com mínimos ajustes, porque em TV não se trata apenas de ouvir, o slogan ilustra na perfeição o efeito da TV sobre as cabecinhas dos cidadãos telespectadores. De onde o relevo primordial do dividendo que a televisão «paga» e não se contabiliza em euros, em dólares, em qualquer outra moeda, mas dá sentido e rendibilidade aos investimentos nela feitos.
Uma velha fábula
A questão de fundo que o conjunto de notícias diárias coloca é a de saber-se até que ponto a tempestade se vai agravar ainda, quanto tempo vai durar, a partir de que momento é que a queda vai ser sustada e a tão desejada retoma das economias vai arrancar, cedendo a crise, finalmente, às medidas anticrise que vêm sendo anunciadas. Dizendo-o por outras palavras: quando é que o formato capitalista das nossas sociedades retomará o clima aparentemente sereno e sem problemas de maior em que parecia viver. Para tanto, conta-se com o efeito das providências correctoras já tomadas, com o reforço da regulação dos mercados, pelo que bastará esperar com paciência e coragem pelo regresso do bom tempo ao reino de um capitalismo expurgado dos seus defeitos. Acontece, porém, que este projecto me lembra uma velha fábula capaz de perturbar este sonho. Eu conto, se não se importam. É a estória de um escorpião que, querendo atravessar um ribeiro mas não sabendo nadar, pediu a uma rã que lhe fizesse o favor de o transportar para a outra margem. A rã, rapariga de bom feitio, acedeu; o escorpião logo lhe subiu para o dorso e a travessia começou. Porém, iam ambos a meio do percurso quando o escorpião se sentiu acometido pelo desejo incontrolável de obedecer aos seus hábitos: cravou na rã o seu aguilhão, morreu a generosa transportadora envenenada, morreu o matador afogado nas águas do ribeiro que queria transpor porque não pudera escapar ao poder da sua própria natureza, mais forte do que a razão lhe aconselharia, até que do instinto de conservação. Como decerto já se entendeu, o que sucede é que também o capitalismo tem uma espécie de natureza própria que lhe impõe comportamentos. E é aqui que a intervenção de Marx se torna inevitável, decerto pela letra do que escreveu há bem mais de um século mas ainda mais pelo que ensinou em matéria de pensamento, de análise, de método. E de diagnóstico. Sem o dizer por estas palavras, ele explicou que o capitalismo é uma espécie de bicho com veneno e aguilhão. Que, neste caso, acabará por espetar em si próprio.
Uma velha fábula
A questão de fundo que o conjunto de notícias diárias coloca é a de saber-se até que ponto a tempestade se vai agravar ainda, quanto tempo vai durar, a partir de que momento é que a queda vai ser sustada e a tão desejada retoma das economias vai arrancar, cedendo a crise, finalmente, às medidas anticrise que vêm sendo anunciadas. Dizendo-o por outras palavras: quando é que o formato capitalista das nossas sociedades retomará o clima aparentemente sereno e sem problemas de maior em que parecia viver. Para tanto, conta-se com o efeito das providências correctoras já tomadas, com o reforço da regulação dos mercados, pelo que bastará esperar com paciência e coragem pelo regresso do bom tempo ao reino de um capitalismo expurgado dos seus defeitos. Acontece, porém, que este projecto me lembra uma velha fábula capaz de perturbar este sonho. Eu conto, se não se importam. É a estória de um escorpião que, querendo atravessar um ribeiro mas não sabendo nadar, pediu a uma rã que lhe fizesse o favor de o transportar para a outra margem. A rã, rapariga de bom feitio, acedeu; o escorpião logo lhe subiu para o dorso e a travessia começou. Porém, iam ambos a meio do percurso quando o escorpião se sentiu acometido pelo desejo incontrolável de obedecer aos seus hábitos: cravou na rã o seu aguilhão, morreu a generosa transportadora envenenada, morreu o matador afogado nas águas do ribeiro que queria transpor porque não pudera escapar ao poder da sua própria natureza, mais forte do que a razão lhe aconselharia, até que do instinto de conservação. Como decerto já se entendeu, o que sucede é que também o capitalismo tem uma espécie de natureza própria que lhe impõe comportamentos. E é aqui que a intervenção de Marx se torna inevitável, decerto pela letra do que escreveu há bem mais de um século mas ainda mais pelo que ensinou em matéria de pensamento, de análise, de método. E de diagnóstico. Sem o dizer por estas palavras, ele explicou que o capitalismo é uma espécie de bicho com veneno e aguilhão. Que, neste caso, acabará por espetar em si próprio.