Um retrato fiel
O tema era a crise. A reportagem mostrava que milhares de famílias foram, nos Estados Unidos, despejadas das suas casas, ou melhor, das casas que habitavam e decerto se tinham habituado a considerar suas. É que as habitações estavam apenas a ser compradas com empréstimos a longo prazo durante anos abundantemente concedidos pela banca, e motivos diversos, talvez na sua maioria relacionados com a premeditada instabilidade do mercado de trabalho norte-americano, acabaram por impor a impossibilidade do pagamento das amortizações contratuais. Saltou então a banca credora a executar as respectivas hipotecas e os compradores perderam de súbito, ou quase, as casas que um dia haviam sonhado serem suas para toda a vida. Mas, como a reportagem também mostrou, perderam mais: perderam também todo o recheio que nas casas haviam acumulado ao longo do tempo e agora era penhorado pela banca para eventual amortização dos valores das prestações já vencidas e não pagas. Por isso vimos e ouvimos uma das donas de casa despejadas a lamentar-se, desolada, porque ela e a sua família apenas tinham ficado com a roupa que traziam vestida no momento do despejo. Na verdade, a televisão já nos tinha trazido situações assim, mas eram então resultantes de situações de guerra ou equiparadas, de cataclismos naturais. Desta vez, a questão era outra: aquela gente sem tecto, sem os bens que ao longo dos anos adquirira, sem saber o que fazer, era o resultado supostamente legítimo de um certo tipo de sociedade e das regras que ela estabelecera, era «natural» no sentido de ser o fruto consequente de um específico tipo de árvore: a sociedade capitalista com o poder financeiro a decidir a vida das gentes. Mas a estória que a reportagem nos contava não terminava ali. Executadas as hipotecas, via-se a banca proprietária de uma enorme massa de casas que não proporcionavam nenhum rendimento, que porventura até obrigariam a vultosos custos de manutenção, e que por isso era urgente converter em liquidez financeira, isto é, vender. Passava-se então a uma segunda parte do drama: as casas de onde tinham sido expulsos os seus compradores endividados eram postas em leilão a preços «convidativos», de saldo, e aos leilões acorriam, vindos de lugares diversos, criaturas que por uma ou outra razão mantinham poder de compra «com dinheiro na mão». Faziam, então, bons negócios que eram a contrapartida positiva da desgraça alheia, o suposto «lado bom» do sistema que produzira a destruição de milhares de vidas que se haviam julgado ancoradas na estabilidade possível. Era, enfim, o Mercado num seu retrato fiel.
Como está escrito
Infelizmente, é o retrato de uma sociedade em estado de efectiva barbárie. É certo que munida de uma panóplia de instrumentos tecnológicos complexos e que, porque o são, parecem testemunhar um grau civilizacional avançado. Mas, na verdade, civilização há-de ser outra coisa. Andam agora os muitos sábios da Economia «de Mercado» e da Politologia pós-moderna muito arreliados porque, em face do que concretamente aconteceu, muitas vozes se levantaram a lembrar Marx. Mas até esta reportagem acerca da espécie de maremoto que percorreu os Estados Unidos sob a forma de despejos veio lembrar que a exploração de homens por outros homens está bem no centro da actividade económica/financeira em situação capitalista. Vejamos. No princípio está a venda de uma casa mediante empréstimo a longo prazo, e quem faça conta aos juros que se acumulam ao longo de todo o tempo da operação logo depara com uma primeira forma de exploração, pois bem se sabe que é sempre o detentor do capital que determina a suposta justeza da retribuição do valor investido. Depois, surgida a crise, emerge não apenas a apropriação da casa pela banca credora mas também a de todo o seu recheio, e não é difícil imaginar como vai este ser avaliado. É uma segunda vaga da exploração. Logo sobrevém uma terceira: oportunistas com dinheiro na mão acorrem a comprar as casas por valores «de ocasião», isto é, seguramente abaixo do preço considerado no inicial contrato de compra e venda celebrado entre a banca e o comprador agora despejado e despojado. Tudo medonho. Mas não se diga que é a lei da selva: é bem pior, é lei do capitalismo. De qualquer coisa que tem de acabar, até por ser humanamente insuportável. Que tem de acabar, como Marx escreveu.
Como está escrito
Infelizmente, é o retrato de uma sociedade em estado de efectiva barbárie. É certo que munida de uma panóplia de instrumentos tecnológicos complexos e que, porque o são, parecem testemunhar um grau civilizacional avançado. Mas, na verdade, civilização há-de ser outra coisa. Andam agora os muitos sábios da Economia «de Mercado» e da Politologia pós-moderna muito arreliados porque, em face do que concretamente aconteceu, muitas vozes se levantaram a lembrar Marx. Mas até esta reportagem acerca da espécie de maremoto que percorreu os Estados Unidos sob a forma de despejos veio lembrar que a exploração de homens por outros homens está bem no centro da actividade económica/financeira em situação capitalista. Vejamos. No princípio está a venda de uma casa mediante empréstimo a longo prazo, e quem faça conta aos juros que se acumulam ao longo de todo o tempo da operação logo depara com uma primeira forma de exploração, pois bem se sabe que é sempre o detentor do capital que determina a suposta justeza da retribuição do valor investido. Depois, surgida a crise, emerge não apenas a apropriação da casa pela banca credora mas também a de todo o seu recheio, e não é difícil imaginar como vai este ser avaliado. É uma segunda vaga da exploração. Logo sobrevém uma terceira: oportunistas com dinheiro na mão acorrem a comprar as casas por valores «de ocasião», isto é, seguramente abaixo do preço considerado no inicial contrato de compra e venda celebrado entre a banca e o comprador agora despejado e despojado. Tudo medonho. Mas não se diga que é a lei da selva: é bem pior, é lei do capitalismo. De qualquer coisa que tem de acabar, até por ser humanamente insuportável. Que tem de acabar, como Marx escreveu.