Gente sã é outra coisa

Correia da Fonseca
A informação chegou-me por um noticiário da TVI e veio, naturalmente, com o tom de indignada surpresa que é um dos caminhos para o populismo que rende audiências: o sector privado que opera na área dos seguros de saúde estaria a «empurrar» para o sector público, isto é, para o Serviço Nacional de Saúde, os doentes de cancro. Complementarmente, um breve e insuficientíssimo esclarecimento prestado em discurso indirecto e atribuído a fonte privada não identificada recolocava a questão em termos provavelmente mais exactos e digamos que mais civilizados: não se tratará de «empurrar» doentes oncológicos porta fora a fim de que eles vão morrer longe mas sim, mais simplesmente, de lhes impedir a entrada antes mesmo que a doença se revele. E isto mediante uma providência muito simples e de todo coerente com o princípio básico segundo o qual não há nada como o dinheiro para resolver os problemas.
No caso, bastará que um seguro que inclua o risco do cancro e do seu tratamento implique o pagamento de prémios elevadíssimos para que os segurados espontaneamente excluam essa eventualidade do âmbito do contrato que efectuem e se fiquem por riscos que incomodem muito menos os proveitos líquidos das seguradoras, género gripe de Inverno e similares. Assim, quando a doença oncológica eventualmente surja terá o segurado de ir bater a outra porta, isto é, à porta do serviço público, pois a seguradora não está aí para perder dinheiro. E o sector privado ainda amealha uma outra vantagem com a situação, embora essa seja um remoto e indirecto ganho: vendo-se o Estado obrigado mais uma vez a suportar custos enormes, e multiplicando-se por muitos milhares situações assim, mais fácil se torna acusar o sector público de despesismo e justificar a presença no terreno da Saúde de uma concorrência privada que está aí, às ordens do cidadão. Desde que ele seja saudável e se limite a uma previsão de salubridade apenas toldada pela admissão de maleitas relativamente ligeiras e sobretudo de tratamento barato.

O que a experiência ensina

Repito, para que não se possa dizer que ando para aqui a inventar, que os contornos da situação noticiada pela TVI se ficaram por uma grande indefinição, tudo muito pela rama, como diria o Pacheco (o do Eça, não o da doutora Manuela). Na verdade, esta área dos privados seguros de Saúde, tal como a dos planos de reforma igualmente privados, bem justificava um trabalho de reportagem realizado com rigor e alguma minúcia. Por exemplo, bem gostaria eu de ter ficado a saber se na altura em que o cidadão se propõe assinar um contrato de seguro de Saúde é sempre informado com suficiente clareza de que o risco de doença cancerosa, e por consequência os custos do seu tratamento, ficam excluídos da segurança que se dispõe a adquirir. Perdoe-se-me a suspeita que está evidentemente implícita nesta minha dúvida, mas bem se sabe por duras e generalizadas experiências que a clareza, a evidência, a verdadeira segurança, não são virtudes muito presentes nos contratos que o negócio segurador, ramo discreto mas frondoso do poder financeiro, apresenta aos seus clientes para assinatura. E não há aqui motivo para surpresa: bem se sabe que a lei suprema no mundo dos negócios, sobretudo se grandes, manda que a parte profissional maneje quanto seja necessário para que do seu lado, e necessariamente contra a parte do cidadão que não dispõe de sabedorias nem experiências, fiquem todas as condições que proporcionam o lucro máximo e se excluam todas as que o possam reduzir. Nesta óptica, que é legítima no quadro das realidades concretas a que a sociedade actual dá o seu assentimento pelo menos por omissão quando não por acção, o destino natural do cidadão de boa-fé é sair mal servido, se não lesado. E nem vou insistir aqui no facto mais que simbólico de, na Antiguidade, o deus das actividades mercantis, quero crer que sobretudo as de grandes dimensões e não das minúsculas, ser o mesmo que o deus dos ladrões. Hoje as coisas são diferentes, as mercâncias são outras e os mercadores também. Os pobres-diabos que se fascinam com o seu brilho é que estão mais ou menos na mesma. Pelo que nunca será demais preveni-los de armadilhas e perigos, tarefa para a qual a televisão estará, se o quiser, particularmente dotada.


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