Tempo de galas

Correia da Fonseca
É talvez impressão minha, mas sinto que a televisão portuguesa (expressão geralmente utilizável para designar os canais terrestres que estão acessíveis a todos os telespectadores) anda fascinada pelas chamadas «galas» e programas seus similares. Esta minha convicção ou, talvez mais exactamente, esta minha ilusão, decorrerá talvez não só da Gala com que a TVI a si própria se homenageou pela dezena e meia de telenovelas com que conquistou a liderança das audiências mas também para o ar verdadeiramente engalanado de outros programas. É ver, por exemplo, como surgem vestidas muito a preceito, com vestidos de noite ou muito perto de o serem, as apresentadoras de programas que por vezes não passam de concursos produzidos como se de solenes eventos se tratasse. Não é que esse apelo a um certo deslumbramento visual, televisual na circunstância, seja condenável; a questão é que um desequilíbrio entre o aparato e o conteúdo pode fazer lembrar um velho adágio que denunciava, por óbvia metáfora, os ninhos que por fora eram cordas de viola e por dentro pão bolorento. Neste contexto, reconheço que por vezes as muitas luzes de variadas cores e as apresentadoras linda e por vezes generosamente vestidas (pelo costureiro convenientemente identificado no fim do programa) me provocam um reflexo de alguma desconfiança que não será mais que um preconceito. Mas é preciso confessar que, por vezes e por motivos bem mais justificados, o preconceito inicial encontra alguma justificação, e isso é que é pior. Por exemplo, a nova série da RTP, «A Minha Geração», para além de desde logo me suscitar uma expectativa recheada de prudências relativamente aos acontecimentos que seriam recordados, tenho-a encarado com esforçada simpatia, e essa simpatia tem incluído, naturalmente, o trabalho de Catarina Furtado. Entristeceu-me, porém, que ela se tenha referido apenas em termos de uma espécie de romantismo patriótico às chamadas «madrinhas de guerra», e mesmo ao Movimento Nacional Feminino dos tempos da Guerra Colonial. É que as tais «madrinhas» e o MNF integravam a retaguarda de uma guerra que era injusta e infame, como aliás a Catarina muito bem sabe, mas nessa retaguarda havia mais gente que era outra, que não só rejeitava a infâmia mas também a combatia, e essa não a lembrou Catarina provavelmente porque não poderia fazê-lo. Até porque, como muita gente vai sabendo, a democrática liberdade de expressão é cada vez mais um luxo que não está ao alcance de toda a gente nem pode ser exercido em qualquer lugar.

Di­fe­rença de es­cala

Regressemos porém a uma recente Gala completamente assumida como tal: à que teve por tema as telenovelas portuguesas produzidas pela TVI com o êxito de audiências que se conhece. Uma primeira objecção imposta pelo elementar rigor obriga a lembrar que, ao contrário do que durante a Gala foi afirmado ou pelo menos repetidamente sugerido, não foi a TVI a primeira estação portuguesa a produzir telenovelas, sendo por isso completamente indevida a designação de «pioneira» na matéria: a primeira telenovela portuguesa foi, como é geralmente sabido, «Vila Faia» (agora em re­make por sinal pouco feliz), produzida pela RTP que, de resto, depois dela produziu outras, algumas das quais de méritos não irrelevantes. O que a TVI fez, isso sim, foi seguir-lhe o exemplo; mas ao lembrá-lo torna-se inevitável acrescentar que o registo escolhido pela TVI foi o de um populismo caracterizado por um sentimentalismo fácil a impregnar enredos que se diriam serem a versão televisiva dos velhos romances de cordel. É certo que a situação melhorou nos tempos mais recentes e também que a produção de novelas pela TVI fez surgir uma espécie de minimercado de emprego para actores, o que não é mérito irrelevante. Quanto a este último ponto, porém, é preciso acentuar que nem todos os que surgem como actores nas novelas da TVI o são verdadeiramente: uma boa parte deles vive a ilusão de o ser, o que será óptimo para uma sua felicidade infelizmente transitória, mas de facto não passa disso. Perante tudo isto, e mais o que aqui não é referido por incapacidade de quem o escreve ou por limitação de espaço, não se recusa à TVI o direito de ter feito a sua festinha, a sua Gala, com trajos a condizer e tudo. Mas previne-se o cidadão telespectador de que entre aquele espavento e a dimensão do feito há uma flagrante diferença de escala.


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