A vaga

Correia da Fonseca
Como bem se compreende, a avaliação da TV que diariamente nos é fornecida ao domicílio passa não só pelo que ela nos vai trazendo mas também, e por vezes sobretudo, pelo que ela não traz por esquecimento ou mais provavelmente por omissão voluntária e estratégica. É certo que nem toda a gente é desta opinião: lembro-me sempre com enternecida nostalgia do senhor director de uma já falecida revista especializada em televisão que um dia, já depois do 25 de Abril e, é claro, do 25 de Novembro, tentou fazer um poucochinho de censura interna eliminando-me um texto em que eu denunciava, já então, a ausência nos noticiários da RTP de informações importantes para o entendimento do que ia acontecendo no País e no mundo. O esclarecido senhor sustentou que a crítica não tinha nada que se preocupar com tais faltas, bastava-lhe referir-se ao que ia vendo e ouvindo no ecrã do televisor. Por azar seu, esta regra, excelente exemplo das directrizes sem princípios mas com fins, não vingou. Mas a tentativa de silenciamento ficou-se-me na memória e tornei-me porventura ainda mais atento às omissões televisivas. Talvez por isso, e antes que esqueça ou para evitar que o dado passe despercebido a muita gente, resolvi que esta coluna registaria hoje, antes do mais, uma informação que encontrei num diário «de referência» mas que não vi ter sido retomado por qualquer telenoticiário: o de que, se o ilustre Gorbatchov não tivesse desencadeado o processo que conduziria ao desmembramento da União Soviética, a URSS teria sido a grande vencedora dos Jogos Olímpicos de Pequim pelo menos segundo o número de medalhas ganhas. Na verdade, a quantidade de medalhas conseguidas pelos atletas das catorze repúblicas que constituíam a União Soviética atingiu um número que supera largamente os das arrecadadas pelas representações da China e dos Estados Unidos quer quanto às medalhas de ouro quer quanto ao total de medalhas recebidas (*). Com razão ou sem ela, parece-me que esta informação não é completamente irrelevante, e por isso aqui fica apesar de a TV se ter esquecido dela ou, em alternativa, de eu próprio a ter deixado escapar.

Dizendo de outro modo

Pois a TV não falou das medalhas que teriam sido da URSS se a História não tivesse sido o que foi, mas tem falado abundantemente daquilo que vários opinadores seguramente sábios designaram por «vaga de violência». Naturalmente ignorante destas e aliás de praticamente todas as coisas, não faço ideia de quantos assaltos e actos similares são necessários para que adequadamente se possa falar de «vaga», mas dou de barato que a palavra esteja certa para a circunstância. Para lá dela, porém, preocupa-me o que o seu intenso uso mediático possa arrastar. Receio, ou talvez até me ponha a supor, que grande parte do comum das gentes, ao ouvir falar de vaga de assaltos e violências, comece a imaginar uma espécie de retratos-robots dos seus autores: indivíduos de cor, imigrantes, ciganos. Assim se constitui uma espécie de ácido caldo-de-cultura óptimo para o florescimento do racismo ou reforço do já existente, para a aparente justificação da xenofobia que anda por aí a alastrar como doença infecciosa. Esta eventual consequência é óptima para o doutor Portas, o do CDS-PP, ou para aquele senhor Machado cujo julgamento foi adiado para Setembro, mas seria péssima para convicções democráticas minimamente rigorosas e sobretudo para a lucidez. De facto, ser lúcido quanto a estas questões passa pelo entendimento de que quando um negro é engolido pela marginalidade delinquente é porque já antes disso ele foi marginalizado, e provavelmente também os seus pais, que a sua família e as dos seus companheiros têm uma longa história de exploração e humilhações. Mas a comunidade mais ou menos branca que é maioria teria tendencialmente (e de facto tem-nos) comportamentos idênticos quando colocada nas mesmas circunstâncias. De onde uma lição a reter urgentemente e que o preconceito racista impede: a de que o eficaz combate à delinquência, às tais efectivas ou supostas «vagas» que ameacem o nosso quotidiano, não passa predominantemente pela presença de polícias das esquinas mas por políticas sociais verdadeiramente democráticas. Assalta-me a memória uma velha canção de Sérgio Godinho: «…Habitação, Saúde, Educação…». Para todos. O que se pode dizer de outro modo: uma sociedade diferente.
_________

(*) Fonte: DN de 25/08/08, pág. 8


Mais artigos de: Argumentos

Um piedoso sentido de humor ...

Não fosse a matéria tão dolorosa e grave e Portugal seria, certamente, a capital mundial da gargalhada. Um primeiro-ministro que tem passado anos a destruir empregos e promete, agora, uma mão cheia de novos postos de trabalho. O mesmo Governo que se tem dedicado activamente a promover a concentração das fortunas, vem...

Os novos <i>Hackers</i>?

A Internet ou - de certo modo mais alargadamente falando - o ciberespaço, que, sabe-se, tem como infra-estrutura e/ou ferramenta principal a Internet, mas que pode ser melhor apreendido - o ciberespaço, é claro - pelo conceito de um espaço gerado pelas «comunicações mediadas por computador», na actualidade realizadas...