Igreja doméstica e «deriva securitária»

Jorge Messias
Visando ganhar alguma credibilidade pública, os meios políticos portugueses recorreram recentemente, uma vez mais, ao figurino da «tempestade num copo de água». Os protagonistas do incidente pré-fabricado são também negociadores na sombra do processo em curso de um futuro «bloco central». Com aparente ausência dos eclesiásticos e das forças da sua área de influência. Exigem, o bom senso e a estratégia política, que na presente fase a Igreja não se evidencie.
Foi pretexto o caso do novo Estatuto Político-Administrativo dos Açores. Palavra puxa palavra, Cavaco Silva tomou ele próprio a palavra e veio a público dirigir-se à Nação. Mário Soares, ex-socialista, racionalista e agnóstico (tudo em processo de revisão) ouviu o que o presidente disse e não gostou. O seu desagrado baseou-se numa argumentação mais ou menos sensata. Cavaco Silva não terá consultado ninguém antes de falar e foi insensível às realidades nacionais no tema eleito para justificar a sua alocução. Mas o próprio Mário Soares, embalado pela música celestial da sua retórica, perdeu o tino e desabafou: dolorosas notícias aguardam os portugueses no regresso do período de férias e o PR devia considerar ser seu dever não agravar o panorama chamando a atenção da opinião pública para mais uma importante questão nacional que, ainda por cima, é inesperada e suscita a atenção dos cidadãos. Estes, têm todo o direito a esquecerem, por umas semanas, os problemas que já os afligem e que agora sabem, se irão agravar.
No mínimo, é curiosa esta filosofia invocada por um homem que foi Chefe de Estado e Secretário-Geral de um partido de «esquerda». O povo português – pensa MS - tem direito a «esquecer» o que aí vem!... Melhor, por poucas semanas que sejam, pode enterrar a cabeça na areia fingindo que não vê... Isto, no momento em que a luta popular pelo direito à informação e a organização da resistência à exploração do homem se tornam factores de primeira linha.

As derivas securitárias

A crise mundial do capitalismo, interna e externa, fez destacar um aspecto essencial: o aparelho político, económico e administrativo montado pelo neocapitalismo não tem capacidade nem talento para resolver os problemas que em catadupa vão surgindo. Bolsas, políticas de preços, relações laborais, segurança social, desemprego, investimento, inflação, saúde e esino, tudo se baralha e procura remendar-se de qualquer maneira. E se a Igreja se cala e se deixa levar a reboque da exploração e da injustiça social (como não lhe convém), é porque sabe que a ruptura capitalista pode estar apenas a um pequeno passo de distância. Os gestores do sumptuoso palácio do dinheiro têm a clara noção de que o seu futuro vai depender do reforço da sua efectiva autoridade. É aquilo a que agora chamam «deriva autoritária». Por detrás da fachada democrática preparam o chicote.
O estalar deste verniz assume aspectos muito distintos entre si. Mas conduz sempre à centralização do poder político. Na frente «externa», impõe as concessões constitucionais necessárias às cruzadas da «luta contra o mal», aos esforços de guerra, às medidas de excepção, à unificação das polícias, ao condicionamento da emigração ou àquilo que os governos designam como antiterrorismo. E aqui é bom notar-se que «acto terrorista» é também o Iraque, o Afeganistão, Guantánamo, a misteriosa Al-Qaeda, as fomes consentidas do Darfur ou as milícias armadas privadas que usam do terrorismo para vencerem a concorrência. Frequentemente, a «luta antiterrorista» encobre as fontes do terrorismo autêntico. E reforça a ideia que só o centralismo musculado é capaz de conter o terrorismo.
Na «frente interna», a mesma história conta-se de outra maneira. Tendo embora os mesmos objectivos : tiranizar os pobres, desarmá-los e usá-los como simples fontes de lucro. É assim que os governos decretam os «códigos do trabalho», reduzem a força do Movimento Sindical, condicionam os partidos políticos, vendem ou destróem o património público em benefício das suas bases de apoio político, etc. É usando em seu proveito próprio o poder legislativo e a comunicação social que o poder prepara os caminhos de uma próxima etapa terrorista. E é cobrindo-se com a capa do obscurantismo religioso, bem pago em dinheiro e em prerrogativas sociais, que o capitalismo conta como recurso para ultrapassar a crise e dominar os rumos da História.
Não há-de ser assim e, quer queira Mário Soares ou não, assim não será. As camadas mais humildes da população portuguesa já compreenderam com quem estão a lidar. São os trabalhadores lançados no desemprego, as famílias que as falências reduzem à miséria, a geração dos novos pedintes, os habitantes do Bairro do Aleixo ou da Quinta da Fonte, os jovens com salários em atraso ou os assalariados cujo trabalho o Governo se prepara para retribuir com um peixe ou um naco de carne.
Que os capitalistas se não enganem a si mesmos. Por vezes há camadas da população semi-adormecidas, é certo. Mas um passo em falso dos tiranos, uma história mal contada, têm inevitavelmente o condão de as acordar.


Mais artigos de: Argumentos

Da sustentabilidade dos lucros

Vem crescendo uma onda entre as grandes e muito grandes empresas, quase todas elas multi ou transnacionais, uma onda, dizia, de vontades para que sejam apresentarem como responsabilíssimas «cidadãs» - uma onda apoiada pelos círculos políticos dirigentes, por que também eles sente essa necessidade para continuarem a...

Difíceis dias de Agosto

Os dias vão maus para o telespectador que, sem se pretender muito exigente para com a TV que lhe fornecem, se esforça por não consentir que ela seja exageradamente eficaz na sua aparente vocação para reduzir ao mínimo o entendimento de quem a olha. Por vezes, liga-se o televisor, espreita-se o que vai nos quatro canais...