A dívida

Correia da Fonseca
Como muitos outros cidadãos, ficara surpreendido e consternado com o que a televisão lhe contara um dia destes: que ele, sem nunca ter pedido dinheiro a ninguém, ao cabo de anos e anos de esforços para se governar dificilmente com o produto do trabalho, dos trabalhos, que viera conseguindo pela vida fora, afinal estava endividado num valor que não sabia referir ao certo mas de que tomara cuidada nota num papelinho e que não era assim tão pequeno quanto uma existência inteira de parcimónias várias parecia prometer. É claro que a TV não se lhe referira especialmente, não tem ele para tanto nem a sombra de destaque ou merecimento, mas falara de «cada português» e como ele, cidadão vulgaríssimo, é indiscutivelmente um desses, logo percebeu que lhe cabe a dívida. E não gostou nada. Porém, as coisas ficaram-lhe ainda mais negras, e também mais confusas, quando a televisão começou a referir-se ao «endividamento das famílias» não uma mas dezenas de vezes, com pequenas alusões de passagem (que apesar de breves lhe iam fazendo mossa e o iam deixando intrigado) e depois com mais alongadas conversas em que intervinham peritos, sujeitos inegavelmente sábios e aliás muito visivelmente considerados pelos jornalistas de serviço. Endividamento? Relanceou a estabilidade financeira da sua magra vida doméstica, lembrou-se de que até deixara de ter conta no minimercado da rua desde que passara a abastecer-se numa grande superfície, de que sempre preferira pagar renda pelo aluguer de casa que contrair um grande empréstimo no banco, de que conseguira pagar a pronto o carrito em terceira mão que lhe ia servindo. E, contudo, bem via que estava incluído quando a TV, sempre sapiente, o informava de que o endividamento das famílias portuguesas já ultrapassara os não sei-quantos-por-cento.

Frangos e iates

Explicaram-lhe então algumas coisas. Disseram-lhe, antes do mais, que aquela dívida não era tão individual quanto lhe parecia e que, por exemplo, se o patrão da empresa onde trabalha se resolvesse a comprar a crédito um novo iate ou se a própria empresa renovasse a frota de automóveis para uso da administração, logo uma pequenina parcela dessas compras, aumentando o montante global do endividamento dos portugueses, iria também acrescer a parte que parecia ser-lhe individualmente imputável. Era a questão da média nacional, não tinha nada de pessoal. Até, para que compreendesse melhor, lhe contaram a estória de um suposto frango graduado em exemplo em que só um ferraria os dentes mas que, dividido o repasto por dois cidadãos, permitiria dizer-se que cada qual comera metade da ave. Não entendeu muito bem, mas pressentiu que nessa questão das médias nacionais caberia eventualmente uma aldrabice e talvez ainda sobrasse espaço para mais outras. E, talvez por se ver que ele ia percebendo as coisas, até a explicação se alargou para áreas que lhe pareceram ser já de finanças internacionais. Assim, explicaram-lhe que, por ser muito frequente e volumoso o afluxo de cidadãos e empresas pedindo empréstimos à banca nacional, talvez para compra de casa própria tratando-se de sujeitos nada resignados a irem dormir para debaixo das pontes (de resto, se a tanto se resignassem todos os carenciados de tecto não haveria pontes que chegassem em Portugal) , talvez tratando-se de empresários decididos a buscar no investimento em títulos comprados na Bolsa o largo lucro que o negociozinho não permite, a provável consequência é que a banca portuguesa se vê sem mãos a medir, isto é, sem cofres bastantes. De onde ela própria ir contrair empréstimos no Lá Fora. De onde o País ficar mais endividado. Mas a questão é que estas explicações, melhores ou piores, que alguém quis dar ao cidadão indefeso que fora atropelado pelas notícias e conversas da TV, não lhe foram prestadas pela própria televisão. De facto, a televisão preferiu abandoná-lo ao misto de sentimento de culpa e de inocência indignada provocados pela informação de que cada português, também ele portanto, tinha uma até então insuspeitada dívida a seu cargo. Pior: entregá-lo ao natural receio de que de um dia para o outro lhe batam à porta para cobrar a dívida que ele nunca fez. Mais: ao obscuro convencimento de que, continuando as coisas pelo caminho que as fizeram tomar, é isso que poderá vir a acontecer. Enquanto, em mares próximos ou distantes, vogam simbólicos iates de velas enfunadas pelo sopro de financiamentos contabilizados na rubrica «endividamento das famílias».


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