As escritas e a globalização

Francisco Silva
Estava para escrever desta vez sobre os «progressos» registados no ensino de matemática no nosso País, aferidos através dos resultados dos exames, das fraudes e altas traições ao nosso Povo que vão sendo executadas por quem de direito – porque isto de Direito, e do seu Estado, tem que se lhe diga, parece nunca estar às ordens de quem mais devia ordenar… com efeitos executivos, claro. E ligava-se isto àquela outra alta traição do apertadíssimo numerus clausus nos estudos de medicina durante anos a fio – mantendo escassa a oferta, consegue-se, pois, uma prática de preços de cuidados de saúde abusivos. E dirão, simulando impotência: é o mercado, é da sua natureza, que fazer? Bem, mas como sobre os temas matemáticos outros virão a terreiro, vou a outro tema com menos praticantes, mas nem por isso pouco relevante.
Refiro-me às línguas, melhor, mais aos modos de serem escritas do que faladas – até ao ponto em que estes dois «aspectos» podem ser analisados autonomamente –, aos sistemas de caracteres e alfabetos, instrumentais na sua concretização, e tudo isto em ambiente de «globalização». Este tem sido, aliás, um assunto recorrente em parte das minhas actividades profissionais, nomeadamente nas relativas às responsabilidades de coordenação /gestão do sistema de nomes de domínio da Internet (de que o «.pt» e o «.info» são exemplos) a nível internacional – já tenho mesmo escrito sobre a questão da abertura dos domínios de topo aos caracteres dos diversos sistemas de escrita, para além do alfabeto romano / latino, versão língua inglesa padronizada no ASCII (American Standard Code for Information Interchange).
A nível da sua concretização – a concretização dos nomes de domínio de topo internacionalizados, como são designados –, depois de um processo de alguns anos, começaram a ser vistos resultados (quem estiver interessado em mais informação e no estudo sobre estas matérias pode começar por visitar, por exemplo, www.icann.org).
A nota em que consiste o presente texto teve como causa próxima a leitura de um livro de John Man, inicialmente publicado no ano 2000, chamado «Alpha Beta – como o nosso alfabeto moldou o mundo ocidental», título traduzido pelo autor destas linhas.

O feitiço e o feiticeiro

Para além do interesse de muita da informação fornecida, de alguns aspectos ensaiados de forma a permitir ao leitor a sua própria elaboração acerca do percurso do alfabeto romano nascido haverá uns 2500 anos, com raízes mais longínquas no Egipto lá para o terceiro milénio A.C., de, por vezes, alguma falta de golpe de asa para aproveitar o acervo de informação utilizada por parte de John Man, para além de tudo isto, chama a atenção, quando nos aproximamos do fim do livro, ao último capítulo, onde esse autor entra por digressões político-geo-estratégicas de longo (e curto) termo, onde a sua posição ideológica vem mais ou menos explicitamente ao de cima – mais mais do que menos numa obra que se diria pretende ser quase académica –, depara-se o leitor com a afirmação de que «Recentemente emergiu uma nova cultura – a Internet – (sic) na qual o sistema Romano já se entricheirou. É possível, se bem que não seja inevitável, que o alfabeto Romano venha a ser universal.»
Mais adiante, já à guisa de conclusão, referindo-se ao que ele designa por uma cultura em evolução rápida, a Internet, exclama / desabafa: «Gostem ou não, os computadores e a Internet são invenções ocidentais» (os europeus diriam: americanas, mas vá lá, ocidentais!). As esperanças: «Os países que usam cirílico e árabe têm uma longa tradição de estudar línguas europeias ocidentais, principalmente inglês (sic), por isso quase todos os detentores de educação superior estão familiarizados com o alfabeto latino.» Os outros não existem, claro! Não sabia ele ainda, por exemplo, das centenas de milhões de chineses que entretanto elegeram a Internet como seu utensílio diário de trabalho…
Depois, mais cautelosamente: «Em meados dos anos 90, qualquer um que arriscasse um prognóstico teria dito que o alfabeto Romano seria a regra no ciberespaço», «Mas hoje [ano 2000], já não assim.» Afinal «um novo standard será quase seguramente universal – o Unicode.» E tornou-se universal. Está a servir nomeadamente para os avanços na área dos nomes de domínio internacionalizados.
Qualificando de cultura a Internet ou, mais modestamente, instrumento principal da sociedade da informação, sectores relevantes do pensamento imperial, global, contavam que ela fosse uma sua arma final. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro.


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