Pela bola é que vamos

Correia da Fonseca
O título que encima estas duas colunas é uma tosca variante de um conhecido verso de Sebastião da Gama. Porém, onde o poeta escreveu a palavra «sonho», escreveu-se neste título a palavra «bola» Por uma razão largamente conhecida: porque nos últimos dias se intensificou a utilização do futebol, aliás um excelente espectáculo de raiz desportiva (não lhe chamamos simplesmente desporto porque não estamos aqui para enganar ninguém), como analgésico administrado por via mediática, com o habitual relevo para a televisão, a fim de que boa parte da população portuguesa, se possível a sua maioria, esqueça as agruras que lhe são impostas pela governação do País, embora de responsabilidade endossável à chamada conjuntura internacional. Nos dias em que os vinte e tantos convocados para a selecção nacional estiveram em estágio Viseu, os canais abertos e ditos generalistas, mais os que por cabo se especializaram em serviços informativos (SIC-Notícias e RTPN), deram claros sinais de terem entrado em delírio febril, parecendo não estarem descansados enquanto não era feita mais uma ligação directa e sempre especial a Viseu. Não porque lá se estivesse a passar alguma coisa de especial, apenas por lá estarem os eleitos, os escolhidos por Scolari sempre segundo um critério estrategicamente polémico quanto a um ou outro caso, de harmonia com uma espécie de estilo que já vem de longe, do outro lado do mar e de outros campeonatos. As horas, ou talvez antes os minutos que antecederam a chegada a Viseu do Cristiano Ronaldo, foram exemplares dessa avidez pela valorização mediática do que de facto não era nada de minimamente relevante, mera gasolina lançada sobre a fogueira desde há muito ateada pelos media nas cabecinhas de quem foi habituado, dir-se-ia que amestrado, para não enxergar mais que o esférico rolando na relva, para não admirar nada além das trivelas do Ricardo Quaresma e das fintas do Ronaldo. Do nosso, é claro; porque, adaptando à modernidade um estribilho velho de quarenta anos e consequentemente arcaico, Ronaldo só há um, o Cristiano e mais nenhum. Por isso, quando ele finalmente chegou ao local do estágio, de óculos escuros a fingir que não queria ser reconhecido, foi o delírio entre os que o pacientemente o aguardavam. E a televisão lá estava, para dar a implícita informação de que no quadro da vida nacional aquele momento era tudo e o resto quase nada.

O risco maior

É certo que na passada semana outros dois assuntos quase competiram com a preparação da equipa nacional para o Euro: o Rock in Rio, na circunstância a acontecer ali in Parque da Belavista, e a campanha para a eleição da doutora Manuela como líder do PSD. Mas o muito tempo de antena consagrado ao Festival da música dita jovem, embora correspondendo a um macronegócio gerido por gente não assim tão juvenil, explica-se por ser uma promoção publicitária, assumida ou disfarçada de informação pura, que terá tido aliás excelentes resultados no plano da eficácia. Quanto à campanha eleitoral pêèssedaica, como se sabe de desfecho desde sempre previsível, não deverá chamar-se-lhe publicitária, mas sempre ficará a dúvida sobre se o foi ou não. Um e outro tema são, decerto, elementos necessários para a avaliação do que é hoje o papel da televisão na sociedade portuguesa, mas não parece que sejam equiparáveis à devoção da TV pelo futebol e em especial pela selecção nacional, «a equipa de todos nós», como reza a fórmula já tradicional. Lá foi ela para a Suíça, com prévia escala pelo Palácio de Belém, acompanhada momento a momento pelas câmaras das três operadoras nacionais. Dir-se-ia mesmo que nunca o PR recebera outros portugueses notáveis, sendo certo que pelo menos nunca a TV deu por isso. De Genebra vieram as imagens dos nossos emigrantes que esperavam os heróis antecipados porque consagrados mesmo antes que a sua glória esteja consumada, e é doloroso pensar que uma eventual prestação medíocre da equipa portuguesa será uma pesada amargura a desabar sobre os que , por essa Europa fora, pelo mundo inteiro, sentiriam que a vitória das «cores nacionais» resgataria um pouco humilhações sofridas ao longo do tempo. Esse é, de resto, o risco maior de toda esta promoção a que a TV deu a sua incomparável força. Talvez, quem sabe?, a Senhora de Caravaggio, de quem Scolari é especialmente devoto, nos livre de tamanha tristeza.


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