Da luta contra o efémero e o fragmentador

Francisco Silva
Quando tenho tido de mudar do computador que utilizo para outro novo, portanto com a perspectiva de ir-se o computador e, é claro, com ele também de ir-se o «meu» disco «duro», o disco do meu dia a dia, onde encontro «tudo» o que procuro, colocam-se sempre, como se tem colocado a muitos outros utilizadores sofrendo situações destas, quando já em fase de desacalmação, já mesmo meio ou completamente enervados com a perspectiva de mudança e perda, e, sem qualquer exagero, com uma sensação de angústia a pesar no peito - sobretudo nas primeiras vezes que acontece a tal substituição do computador -, quando tal acontece, dizia, colocam-se questões como as seguintes: então como vou guardar os meus ficheiros, esta minha biblioteca digital, sem a qual não posso viver? Aproveito todos os ficheiros, ou deito fora aqueles que já não me interessam? Selecciono apenas os que me interessam? Começam a assaltar-me as dúvidas sobre o que fazer (e ao mesmo tempo assalta-nos algum terror que o tesouro, nem que seja parte de ele, possa ir à vida). Se estiver numa situação psicológica optimista e me achar com alguma capacidade de controlo da situação, até se me antolham perspectivas mais racionais: Aproveito a oportunidade para finalmente reorganizar os ficheiros? Mas quando terei eu tempo ou disponibilidade para tal tarefa? Etc.
Refiro-me, como é óbvio, aos computadores pessoais e à sua periódica substituição nos últimos 15-20 anos. Nem outros poderiam ser os «objectos» referidos acima, porque a utilização partilhada de computadores, nomeadamente das respectivas unidades centrais de processamento, para os meus ficheiros «pessoais», a partir de estações de trabalho também já foi chão que deu uvas, e há que séculos, ou pelo menos parece que foi esse o tempo todo que passou, quando vivíamos metidos noutras encarnações - é certo que ainda hoje partilhamos recursos de memória centrais em redes de empresas a que nos ligaram, mas não o fazemos com grande eficácia, e ainda menos com boa vontade… São coisas a parecer métodos, processos, do antigamente, esse antigamente que os informáticos e as hierarquias burocráticas não há meio de largarem de mão - pensam muitos. E a verdade é que os discos [«duros»] dos nossos computadores pessoais transformaram-se como que em próteses individuais cujas falhas são tidas como dramáticas amnésias de novo tipo, como se - para tantos - de novas doenças mentais se tratasse.
Mas, dizia, quando tenho tido de mudar do computador que utilizo para outro novo, o resultado procurado, e alcançado, foi sempre salvar integralmente - pois claro - o conteúdo do disco que ia ser deixado para o novo disco. E como o novo disco teve sempre uma capacidade de memória mais que suficiente para esse «imposto» de partida, o que sobrava de memória, depois de incluído o que vinha de trás, pelo menos para o tipo de utilização que é a típica do escrevente destas linhas, nunca chegou a criar situações do tipo «gastou-se a água do reservatório onde me abasteço», mas sim «a capacidade do reservatório de água, face às minhas necessidades, parece ilimitada».
De qualquer maneira, tudo o que possuía ficava [para] sempre gravado, e lá está, e num suporte ainda melhor - menos sujeito a falhas e deteriorações - que o anterior. E mais. Não lhe acontece como às fotografias em papel, que de início a preto e branco vão ficando sépia até, para efeitos práticos, deixarem de existir.
Enfim, sinais a lembrarem-me uma contradição desta época, já dita pós-moderna. A época do efémero, a época dos órgãos comunicação social criadores de um ambiente hiperreal, desmemorizador, freneticamente fragmentador das percepções da realidade, época sobretudo corporizada na televisão. E mesmo no caso dos jornais e dos outros órgãos escritos, intrinsecamente mais permanentes, todos eles acabam por ir para o papelão. Uma época em que, por outro lado, cada vez mais pessoas - no início de 2007 eram mais de 1300 milhões em todo o mundo - vão dispondo dos seus imensos arquivos - escritos, fotos, em vídeo -, vão publicando, debatendo na Net, utilizando mais ferramentas informáticas «sociais».


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