Neo realismo, exposições gerais de artes plásticas
A criação do Museu do Neo Realismo e as iniciativas que tem desenvolvido, exposições, conferências, publicação de catálogos e outros documentos e nomeadamente as actividades de pesquisa dos seus responsáveis (ou coordenadas por eles), vieram em boa hora cobrir uma lacuna na História da Arte Contemporânea em Portugal.
Este é um facto tanto mais importante porquanto este período da cultura portuguesa tem sido, desde a sua eclosão, persistentemente ignorado, subestimado ou deturpado por aqueles que ocupavam lugares de destaque na pesquisa e divulgação da História da Arte, particularmente das Artes Plásticas.
Não irei aprofundar aqui as razões desse apagamento e deixarei de lado a carga política que, em muitos casos, esteve na sua origem e se foi prolongando pelos tempos fora, até cristalizar em ideias feitas, difíceis de remover.
Mas não posso deixar de referir que os mais activos detractores do neo-realismo o atacaram utilizando conceitos (ou preconceitos?) dogmáticos e intolerantes, exactamente quando acusavam os neo realistas desses defeitos de dogmatismo, intolerância e... é claro, de ortodoxia. Chavões e equívocos que ainda hoje perduram, em textos de seguidores que continuam a repeti los, ignorando talvez que nada é pior na crítica da arte do que o facciosismo, as ideias feitas e a paz podre do elogio mútuo em capelinhas de amigos.
Mesmo aqueles que têm tratado do neo realismo visual com alguma equidade e profundidade não lhe reconhecem a importância que de facto teve e o impulso e avanço que determinou nas Artes Plásticas em Portugal. O mesmo não acontece com os estudiosos e especialistas do movimento neo realista na literatura, que consideram ter esta desempenhado um papel de vanguarda no panorama da nossa cultura.
Julgo que deveriam ser mais aprofundadas as razões que estão na origem desta diferença entre os tratamentos dados pelos críticos e ensaístas das artes visuais e pelos da literatura neo realista, quando as origens, filosofia e objectivos do movimento tinham as mesmas raízes comuns e tanto na literatura como nas artes visuais se destacaram nomes cujo valor é indiscutível na cultura portuguesa.
No seu texto introdutório ao catálogo da exposição inaugural deste Museu, o Dr. David Santos aborda esta questão, nomeadamente quanto à valorização crítica das artes plásticas neo realistas.
Entretanto, mesmo este estudo, de uma notável objectividade, aborda com muito mais relevo o papel da intervenção cívica e cultural do neo realismo visual do que o seu vanguardismo plástico, embora ponha claramente o dedo na ferida da subestimação a que o sujeitaram críticos e historiadores da arte como José Augusto França.
Se é certo que muito recentemente surgiram investigadores que iniciam uma nova abordagem do movimento neo realista nas artes visuais, o que acontece, porém, é que quase inevitavelmente se apoiam em obras anteriores, correndo o risco de prolongar alguns equívocos.
Daí a importância do Museu do Neo Realismo e dos objectivos expressos pelo seu coordenador Dr. David Santos (cito): «uma mais ampla e continuada divulgação sobre a expressão visual de um movimento que ainda está preso a demasiados clichés e preconceitos, o que tem impedido, em certa medida, uma interpretação mais eficaz e produtiva do ponto de vista da investigação científica».
A Dra. Luísa Duarte Santos, no mesmo catálogo da exposição inaugural, explica as razões que levaram a centrar esta mostra no período que vai dos anos 40 a 60, com argumentos que comprovam que ao nível das artes plásticas o neo realismo não se esgotou logo em inícios dos anos 50, segundo Ernesto de Sousa parece entender no seu livro «Pintura Portuguesa Neo Realista (1943 1953)», e conforme Rui Mário Gonçalves afirmou quando da exposição «Arte Portuguesa nos Anos 50», não só no catálogo mas também expressamente no debate no dia do seu encerramento, na Sociedade Nacional de Belas Artes, nomeadamente quando à minha intervenção crítica objectou tratar se de uma questão dos anos 40.
Meandros da memória e do esquecimento
Porque não venho falar vos como historiadora da arte, que não sou, nem mesmo como especialista da matéria, mas sim como uma testemunha e participante na vida e lutas dessa época, passo a ler vos uma síntese da minha intervenção nesse debate, publicada no Jornal de Letras de 16 de Março de 1993 sob o título: «A propósito da Exposição Arte Portuguesa nos anos 50 – Memória e Esquecimento», que consubstancia a ideia central que pretendo desenvolver aqui, hoje:
«No início do seu texto sobre "Arte Portuguesa nos Anos 50", catálogo da exposição do mesmo nome, Rui Mário Gonçalves diz que o silenciamento persistente quanto às propostas artísticas e às circunstâncias sociais dessa década "é ainda herdeiro do tal silêncio que invadiu a sociedade portuguesa, por motivos políticos, durante a própria década".
«Diz mais adiante que "a consciencialização exige linguagem; e, sem diálogo, a linguagem degrada se". Esta é uma afirmação com a qual estou completamente de acordo.
«É uma verdade que não só a linguagem se degrada, como os próprios factos vão sendo diluídos, menos pelo tempo do que na memória daqueles para quem não é cómodo recordar.
«Também a documentação da época é afectada pelos lapsos e distorções inerentes ao fascismo. Essa é provavelmente a razão das várias lacunas que se me depararam no texto do catálogo e na exposição.
«Por isso senti a necessidade de aqui trazer alguma documentação e a memória viva de factos que marcaram a primeira metade da década.
«Os traços dominantes são a contestação viva e actuante do ensino academizante e retrógrado na ESBAL, a acção unitária dos artistas pela modernização dos critérios da SNBA, nomeadamente através da eleição dos júris das exposições e de direcções da Sociedade abertas à modernidade e isentas de influências fascistas, e a organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas (1946/1956), verdadeiros actos de confrontação com o regime fascista e para a participação nas quais era condição implícita não apoiar o regime.
«Não eram dissenções entre neo realistas e surrealistas que traçavam fronteiras intransponíveis, mas sim o ser ou não antifascista, dentro da consciência dominante da responsabilidade político social do artista, que, aliás, tinha sido anos antes magnificamente definida por André Breton aquando do diferendo surrealistas/Dali (cartas de 3 de Fevereiro de 1934 e seguintes de Breton a Dali). Na primeira metade de década de 50 foi esta a fronteira principal de confrontação; e o vanguardismo artístico esteve sempre, com poucas excepções, do lado não oficial.
«A contestação dos estudantes da ESBAL e a acção dos artistas tomaram muitas vezes o carácter de verdadeiras batalhas. Foram anos de lutas que extravasaram do Largo de S. Francisco para o Chiado, do Café Chiado e da Brasileira para esta casa da Barata Salgueiro. Lutas que levaram à demissão do director da ESBAL, o incompetente Cunha "Bruto", informador da PIDE, à expulsão do oficialíssimo Eduardo Malta de sócio da SNBA e ao encerramento desta como retaliação.
«Por tudo isto, estranhei não encontrar esta palavra "luta" no texto de Rui Mário Gonçalves. E não me parece que seja característico da época o que diz na página 93: que os jovens interessados na modernidade chegavam a esconder a sua frequência na Escola, quando a verdade é que todos éramos conhecidos como tal, e a vida na Escola era efervescente.
«Estranhei não encontrar uma única referência a José Dias Coelho, que desde anos antes e até à primeira metade dos anos 50 teve uma acção preponderante quer na contestação aos programas da ESBAL, quer na modernização do papel da SNBA e a sua abertura aos artistas não afectos ao regime, quer na dinamização e organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas. Quando da realização da grande retrospectiva da obra artística de José Dias Coelho, com escultura, desenho, gravura e trabalhos em vidro, no salão grande desta SNBA, em Março de 1975, muitas dezenas de artistas me rodearam, recordando e enaltecendo o papel de Dias Coelho como artista e em defesa dos artistas de vanguarda e de uma arte de vanguarda.
«A experiência de muitos anos de vida tem me mostrado que são longos e complexos os meandros da memória e do esquecimento.»
Foi este o teor da minha intervenção, à qual Rui Mário Gonçalves respondeu, de uma forma algo displicente, que eu tinha um discurso típico dos anos 40. Resposta que me espantou, vinda de um historiador com tantas responsabilidades. E, exactamente porque estou a citar factos que interessa confirmar, junto fotocópias desta minha intervenção publicada no Jornal de Letras de Março de 1993 e do jornal Público de 9 de Fevereiro de 1993, que relata essa sessão na SNBA sob o título «A fria década de 50?» com interrogação, é claro.
Junto também fotocópias de circulares e cartas aos sócios da SNBA datadas de Abril, Maio e Junho de 1952 e assinadas pelo presidente da Direcção escultor Anjos Teixeira, que permitem entender o que foi a luta travada pela eleição de júris abertos à modernidade na Barata Salgueiro, júris até ali dominados pelos velhos bonzos do regime como Eduardo Malta, pintor das altas figuras da ditadura fascista, que acabou por ser expulso de sócio pela provocação que encenou contra José Dias Coelho, que encabeçava essa batalha. E que outra palavra se não esta podemos usar, quando de verdadeiras batalhas se tratou?
O regime fascista, esse, soube entender que a frente unida dos artistas plásticos tinha alcançado uma vitória, que a eleição de um júri progressista e a expulsão de Eduardo Malta constituiu uma derrota e por isso mandou encerrar a SNBA, para a qual, pouco tempo antes, tinha sido eleita uma direcção de artistas unitária sob a presidência de Anjos Teixeira, contra a lista daqueles que obstaculizavam ferozmente a entrada de artistas e obras de vanguarda nos Salões da Primavera e Outono da SNBA.
Luta pelas modernidade
Considero que estes factos não são de somenos importância quando se trata de pesquisar os caminhos para a modernidade, tanto mais que um dos factores sempre tidos em conta pelos historiadores deste período é a sucessão de esforços das várias gerações de modernistas para conquistarem a visibilidade em mostras públicas. É citado por exemplo António Pedro, um dos principais dinamizadores da modernização, com a criação da Galeria UP, que acabou por não ter grandes resultados práticos dada a inexistência então de um mercado da arte, assim como a realização de várias exposições de artistas modernos que, ao longo dos anos 30, se foram realizando, sem continuidade.
Exactamente para preencher esta lacuna foi criado em 1933 o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), sob orientação de matriz nazi definida por Salazar como a «política do espírito» e que António Ferro procurava levar à prática no campo da cultura e particularmente nas Artes Plásticas, com uma adaptação inteligente às nossas condições nacionais.
Assim o SPN, cuja sigla mudou para SNI (Secretariado Nacional de Informação) a partir de 1944, realizou as exposições anuais de Arte Moderna, catorze entre 1935 e 1951, num ecletismo que pretendia conciliar os «velhos» e os «novos», segundo o objectivo de António Ferro. Mas, embora tenham permitido a sobrevivência material e a visibilidade de alguns artistas seleccionados segundo os critérios políticos do regime, a verdade é que, ao longo dos anos, muitos destes artistas, que de uma forma ou de outra não aceitaram os constrangimentos impostos pelos valores mitificados do pseudo nacionalismo daquilo que se passou a chamar «folclore estilizado à moda do SNI», foram saindo da sua esfera de acção e deixaram de expor nos salões do SNI.
No plano estético, o pseudo modernismo fomentado por António Ferro foi bem caracterizado por Diogo de Macedo, que no início dos anos quarenta já denunciava o «academismo de fundos claros do SPN, só superficialmente diferente do academismo de fundos escuros da Sociedade Nacional de Belas Artes».
É neste contexto que se inscrevem as lutas dos anos 40 e 50 pela modernidade na Escola e na Sociedade Nacional de Belas Artes, nomeadamente pela conquista de espaços para exposições fora da influência do SNI e sem as peias dos academismos cediços da SNBA, lutas desencadeadas por um grande grupo de artistas de vanguarda. E, quando digo de vanguarda, refiro me quer ao plano das opções estéticas quer às opções políticas sob influência dos comunistas, ou próximo destes.
Um dos episódios teve como desfecho o encerramento da SNBA, que descrevi. Mas ele não está desligado de outro facto, de maior amplitude, que foi a organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas, que entre 1946 e 1956 se realizaram na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde tiveram acolhimento exactamente porque tinha sido eleita uma Direcção de artistas, unitária e com vistas mais largas, quer no plano político quer no estético, do que as Direcções anteriores.
Só a partir de 1957, com a realização da primeira exposição promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian e os seus apoios regulares a bolseiros, é que este panorama nas artes plásticas se alterou sensivelmente.
Mas esta não é razão para apagar ou ignorar aqueles anos difíceis em que as Exposições Gerais de Artes Plásticas constituíram uma abertura e um campo adequado para a apresentação de manifestações artísticas que lutavam pela conquista da expressão livre, pelo que a cada artista interessava exprimir como fundo e forma e, em última análise, contribuindo para fomentar uma renovação no panorama artístico português.
Rogério Ribeiro, o nosso querido amigo há pouco desaparecido e que participou activamente na organização das EGAP's e no movimento neo-realista, é o melhor exemplo de um grande artista que dai seguiu para outros caminhos sem rejeitar o ponto de partida.
A própria evolução daqueles que, tendo sido cultores da prática e da reflexão plástica do neo realismo passaram para outras opções estéticas, comprova que ali tinham ganho o poderoso impulso do inconformismo e da luta pelo novo, que os catapultou para novas experiências.
Apelo à pesquisa sem preconceitos
(…) E aqui cabe falar, ainda que sucintamente, da tão debatida questão forma/conteúdo, que particularmente a propósito do neo realismo, mas não só, agitou durante anos o panorama intelectual português. Tanto quanto consegui pesquisar, julgo que sobre esta questão, que vem de tão longe, a última abordagem de fundo foi feita por Álvaro Cunhal no seu livro «A arte, o artista e a sociedade» publicado em Novembro de 1996. Sem considerar como definitivas as reflexões ali expostas, porque sempre novas ideias virão acrescentar algo de novo a debates como este, julgo que nesta obra Álvaro Cunhal avança muito em relação até a teses suas em velhos debates. É certamente uma visão abrangente, profunda e, para quem não o conheceu e quem dele fez uma ideia errada, surpreendentemente antidogmática do problema.
Diz ele sobre o debate forma/conteúdo:
«Contesta se e esquece se que, na apreciação da obra de arte, há duas realidades objectivas a considerar.
«Uma é que a arte está indissolúvel e inevitavelmente ligada à vida social, que a obra de arte é um elemento integrante da sociedade, e que numa obra de arte existem reflexos e significações da vida social explicitados ou não. Esta realidade tem sido sintetizada com a expressão "conteúdo" da obra de arte.
«Outra realidade objectiva é que na obra de arte a forma é um elemento básico do valor estético.
«O mal é que a querela forma/conteúdo, que se trava ao longo dos anos no plano ideológico, na crítica e no comportamento, cristalizou as mais das vezes em conflitos irredutíveis que dificultaram e impediram um debate suficientemente esclarecedor».
E afirma mais adiante: «Não terminou tal querela. É inevitável que continue. O necessário, essencial, indispensável, é que se rejeite e se supere de vez o dogmatismo e a intolerância.
«Uma das suas mais claras expressões consistiu e consiste em negar o valor estético a obras inseridas numa tendência ou estilo contrário ou diferente ao que cada qual defende ou prefere.(...) É necessário reflectir serenamente sobre tais conceitos e atitudes.»
Termino com esta citação de Álvaro Cunhal, que aqui repito, como um apelo à pesquisa sem preconceitos e à análise sem adulterações de um período da nossa História tão rico na luta abrangente do novo contra o velho, não só no plano político, mas também no plano da arte, da literatura e da cultura em geral.
Um período a que José Dias Coelho deu a sua contribuição como revolucionário e como artista. Neste dia em que se encerra a sua exposição que este Museu do Neo Realismo em boa hora organizou, quero deixar aqui expresso o meu testemunho, não só como sua companheira mas também como camarada de luta. A sua acção constituiu um importante factor de alargamento da frente intelectual antifascista, que nunca permitiu espaço de manobra e de credibilidade aos intelectuais servidores do regime.
(*) Intervenção no encerramento da exposição de José Dias Coelho organizada pelo Museu do Neo-Realismo
Não irei aprofundar aqui as razões desse apagamento e deixarei de lado a carga política que, em muitos casos, esteve na sua origem e se foi prolongando pelos tempos fora, até cristalizar em ideias feitas, difíceis de remover.
Mas não posso deixar de referir que os mais activos detractores do neo-realismo o atacaram utilizando conceitos (ou preconceitos?) dogmáticos e intolerantes, exactamente quando acusavam os neo realistas desses defeitos de dogmatismo, intolerância e... é claro, de ortodoxia. Chavões e equívocos que ainda hoje perduram, em textos de seguidores que continuam a repeti los, ignorando talvez que nada é pior na crítica da arte do que o facciosismo, as ideias feitas e a paz podre do elogio mútuo em capelinhas de amigos.
Mesmo aqueles que têm tratado do neo realismo visual com alguma equidade e profundidade não lhe reconhecem a importância que de facto teve e o impulso e avanço que determinou nas Artes Plásticas em Portugal. O mesmo não acontece com os estudiosos e especialistas do movimento neo realista na literatura, que consideram ter esta desempenhado um papel de vanguarda no panorama da nossa cultura.
Julgo que deveriam ser mais aprofundadas as razões que estão na origem desta diferença entre os tratamentos dados pelos críticos e ensaístas das artes visuais e pelos da literatura neo realista, quando as origens, filosofia e objectivos do movimento tinham as mesmas raízes comuns e tanto na literatura como nas artes visuais se destacaram nomes cujo valor é indiscutível na cultura portuguesa.
No seu texto introdutório ao catálogo da exposição inaugural deste Museu, o Dr. David Santos aborda esta questão, nomeadamente quanto à valorização crítica das artes plásticas neo realistas.
Entretanto, mesmo este estudo, de uma notável objectividade, aborda com muito mais relevo o papel da intervenção cívica e cultural do neo realismo visual do que o seu vanguardismo plástico, embora ponha claramente o dedo na ferida da subestimação a que o sujeitaram críticos e historiadores da arte como José Augusto França.
Se é certo que muito recentemente surgiram investigadores que iniciam uma nova abordagem do movimento neo realista nas artes visuais, o que acontece, porém, é que quase inevitavelmente se apoiam em obras anteriores, correndo o risco de prolongar alguns equívocos.
Daí a importância do Museu do Neo Realismo e dos objectivos expressos pelo seu coordenador Dr. David Santos (cito): «uma mais ampla e continuada divulgação sobre a expressão visual de um movimento que ainda está preso a demasiados clichés e preconceitos, o que tem impedido, em certa medida, uma interpretação mais eficaz e produtiva do ponto de vista da investigação científica».
A Dra. Luísa Duarte Santos, no mesmo catálogo da exposição inaugural, explica as razões que levaram a centrar esta mostra no período que vai dos anos 40 a 60, com argumentos que comprovam que ao nível das artes plásticas o neo realismo não se esgotou logo em inícios dos anos 50, segundo Ernesto de Sousa parece entender no seu livro «Pintura Portuguesa Neo Realista (1943 1953)», e conforme Rui Mário Gonçalves afirmou quando da exposição «Arte Portuguesa nos Anos 50», não só no catálogo mas também expressamente no debate no dia do seu encerramento, na Sociedade Nacional de Belas Artes, nomeadamente quando à minha intervenção crítica objectou tratar se de uma questão dos anos 40.
Meandros da memória e do esquecimento
Porque não venho falar vos como historiadora da arte, que não sou, nem mesmo como especialista da matéria, mas sim como uma testemunha e participante na vida e lutas dessa época, passo a ler vos uma síntese da minha intervenção nesse debate, publicada no Jornal de Letras de 16 de Março de 1993 sob o título: «A propósito da Exposição Arte Portuguesa nos anos 50 – Memória e Esquecimento», que consubstancia a ideia central que pretendo desenvolver aqui, hoje:
«No início do seu texto sobre "Arte Portuguesa nos Anos 50", catálogo da exposição do mesmo nome, Rui Mário Gonçalves diz que o silenciamento persistente quanto às propostas artísticas e às circunstâncias sociais dessa década "é ainda herdeiro do tal silêncio que invadiu a sociedade portuguesa, por motivos políticos, durante a própria década".
«Diz mais adiante que "a consciencialização exige linguagem; e, sem diálogo, a linguagem degrada se". Esta é uma afirmação com a qual estou completamente de acordo.
«É uma verdade que não só a linguagem se degrada, como os próprios factos vão sendo diluídos, menos pelo tempo do que na memória daqueles para quem não é cómodo recordar.
«Também a documentação da época é afectada pelos lapsos e distorções inerentes ao fascismo. Essa é provavelmente a razão das várias lacunas que se me depararam no texto do catálogo e na exposição.
«Por isso senti a necessidade de aqui trazer alguma documentação e a memória viva de factos que marcaram a primeira metade da década.
«Os traços dominantes são a contestação viva e actuante do ensino academizante e retrógrado na ESBAL, a acção unitária dos artistas pela modernização dos critérios da SNBA, nomeadamente através da eleição dos júris das exposições e de direcções da Sociedade abertas à modernidade e isentas de influências fascistas, e a organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas (1946/1956), verdadeiros actos de confrontação com o regime fascista e para a participação nas quais era condição implícita não apoiar o regime.
«Não eram dissenções entre neo realistas e surrealistas que traçavam fronteiras intransponíveis, mas sim o ser ou não antifascista, dentro da consciência dominante da responsabilidade político social do artista, que, aliás, tinha sido anos antes magnificamente definida por André Breton aquando do diferendo surrealistas/Dali (cartas de 3 de Fevereiro de 1934 e seguintes de Breton a Dali). Na primeira metade de década de 50 foi esta a fronteira principal de confrontação; e o vanguardismo artístico esteve sempre, com poucas excepções, do lado não oficial.
«A contestação dos estudantes da ESBAL e a acção dos artistas tomaram muitas vezes o carácter de verdadeiras batalhas. Foram anos de lutas que extravasaram do Largo de S. Francisco para o Chiado, do Café Chiado e da Brasileira para esta casa da Barata Salgueiro. Lutas que levaram à demissão do director da ESBAL, o incompetente Cunha "Bruto", informador da PIDE, à expulsão do oficialíssimo Eduardo Malta de sócio da SNBA e ao encerramento desta como retaliação.
«Por tudo isto, estranhei não encontrar esta palavra "luta" no texto de Rui Mário Gonçalves. E não me parece que seja característico da época o que diz na página 93: que os jovens interessados na modernidade chegavam a esconder a sua frequência na Escola, quando a verdade é que todos éramos conhecidos como tal, e a vida na Escola era efervescente.
«Estranhei não encontrar uma única referência a José Dias Coelho, que desde anos antes e até à primeira metade dos anos 50 teve uma acção preponderante quer na contestação aos programas da ESBAL, quer na modernização do papel da SNBA e a sua abertura aos artistas não afectos ao regime, quer na dinamização e organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas. Quando da realização da grande retrospectiva da obra artística de José Dias Coelho, com escultura, desenho, gravura e trabalhos em vidro, no salão grande desta SNBA, em Março de 1975, muitas dezenas de artistas me rodearam, recordando e enaltecendo o papel de Dias Coelho como artista e em defesa dos artistas de vanguarda e de uma arte de vanguarda.
«A experiência de muitos anos de vida tem me mostrado que são longos e complexos os meandros da memória e do esquecimento.»
Foi este o teor da minha intervenção, à qual Rui Mário Gonçalves respondeu, de uma forma algo displicente, que eu tinha um discurso típico dos anos 40. Resposta que me espantou, vinda de um historiador com tantas responsabilidades. E, exactamente porque estou a citar factos que interessa confirmar, junto fotocópias desta minha intervenção publicada no Jornal de Letras de Março de 1993 e do jornal Público de 9 de Fevereiro de 1993, que relata essa sessão na SNBA sob o título «A fria década de 50?» com interrogação, é claro.
Junto também fotocópias de circulares e cartas aos sócios da SNBA datadas de Abril, Maio e Junho de 1952 e assinadas pelo presidente da Direcção escultor Anjos Teixeira, que permitem entender o que foi a luta travada pela eleição de júris abertos à modernidade na Barata Salgueiro, júris até ali dominados pelos velhos bonzos do regime como Eduardo Malta, pintor das altas figuras da ditadura fascista, que acabou por ser expulso de sócio pela provocação que encenou contra José Dias Coelho, que encabeçava essa batalha. E que outra palavra se não esta podemos usar, quando de verdadeiras batalhas se tratou?
O regime fascista, esse, soube entender que a frente unida dos artistas plásticos tinha alcançado uma vitória, que a eleição de um júri progressista e a expulsão de Eduardo Malta constituiu uma derrota e por isso mandou encerrar a SNBA, para a qual, pouco tempo antes, tinha sido eleita uma direcção de artistas unitária sob a presidência de Anjos Teixeira, contra a lista daqueles que obstaculizavam ferozmente a entrada de artistas e obras de vanguarda nos Salões da Primavera e Outono da SNBA.
Luta pelas modernidade
Considero que estes factos não são de somenos importância quando se trata de pesquisar os caminhos para a modernidade, tanto mais que um dos factores sempre tidos em conta pelos historiadores deste período é a sucessão de esforços das várias gerações de modernistas para conquistarem a visibilidade em mostras públicas. É citado por exemplo António Pedro, um dos principais dinamizadores da modernização, com a criação da Galeria UP, que acabou por não ter grandes resultados práticos dada a inexistência então de um mercado da arte, assim como a realização de várias exposições de artistas modernos que, ao longo dos anos 30, se foram realizando, sem continuidade.
Exactamente para preencher esta lacuna foi criado em 1933 o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), sob orientação de matriz nazi definida por Salazar como a «política do espírito» e que António Ferro procurava levar à prática no campo da cultura e particularmente nas Artes Plásticas, com uma adaptação inteligente às nossas condições nacionais.
Assim o SPN, cuja sigla mudou para SNI (Secretariado Nacional de Informação) a partir de 1944, realizou as exposições anuais de Arte Moderna, catorze entre 1935 e 1951, num ecletismo que pretendia conciliar os «velhos» e os «novos», segundo o objectivo de António Ferro. Mas, embora tenham permitido a sobrevivência material e a visibilidade de alguns artistas seleccionados segundo os critérios políticos do regime, a verdade é que, ao longo dos anos, muitos destes artistas, que de uma forma ou de outra não aceitaram os constrangimentos impostos pelos valores mitificados do pseudo nacionalismo daquilo que se passou a chamar «folclore estilizado à moda do SNI», foram saindo da sua esfera de acção e deixaram de expor nos salões do SNI.
No plano estético, o pseudo modernismo fomentado por António Ferro foi bem caracterizado por Diogo de Macedo, que no início dos anos quarenta já denunciava o «academismo de fundos claros do SPN, só superficialmente diferente do academismo de fundos escuros da Sociedade Nacional de Belas Artes».
É neste contexto que se inscrevem as lutas dos anos 40 e 50 pela modernidade na Escola e na Sociedade Nacional de Belas Artes, nomeadamente pela conquista de espaços para exposições fora da influência do SNI e sem as peias dos academismos cediços da SNBA, lutas desencadeadas por um grande grupo de artistas de vanguarda. E, quando digo de vanguarda, refiro me quer ao plano das opções estéticas quer às opções políticas sob influência dos comunistas, ou próximo destes.
Um dos episódios teve como desfecho o encerramento da SNBA, que descrevi. Mas ele não está desligado de outro facto, de maior amplitude, que foi a organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas, que entre 1946 e 1956 se realizaram na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde tiveram acolhimento exactamente porque tinha sido eleita uma Direcção de artistas, unitária e com vistas mais largas, quer no plano político quer no estético, do que as Direcções anteriores.
Só a partir de 1957, com a realização da primeira exposição promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian e os seus apoios regulares a bolseiros, é que este panorama nas artes plásticas se alterou sensivelmente.
Mas esta não é razão para apagar ou ignorar aqueles anos difíceis em que as Exposições Gerais de Artes Plásticas constituíram uma abertura e um campo adequado para a apresentação de manifestações artísticas que lutavam pela conquista da expressão livre, pelo que a cada artista interessava exprimir como fundo e forma e, em última análise, contribuindo para fomentar uma renovação no panorama artístico português.
Rogério Ribeiro, o nosso querido amigo há pouco desaparecido e que participou activamente na organização das EGAP's e no movimento neo-realista, é o melhor exemplo de um grande artista que dai seguiu para outros caminhos sem rejeitar o ponto de partida.
A própria evolução daqueles que, tendo sido cultores da prática e da reflexão plástica do neo realismo passaram para outras opções estéticas, comprova que ali tinham ganho o poderoso impulso do inconformismo e da luta pelo novo, que os catapultou para novas experiências.
Apelo à pesquisa sem preconceitos
(…) E aqui cabe falar, ainda que sucintamente, da tão debatida questão forma/conteúdo, que particularmente a propósito do neo realismo, mas não só, agitou durante anos o panorama intelectual português. Tanto quanto consegui pesquisar, julgo que sobre esta questão, que vem de tão longe, a última abordagem de fundo foi feita por Álvaro Cunhal no seu livro «A arte, o artista e a sociedade» publicado em Novembro de 1996. Sem considerar como definitivas as reflexões ali expostas, porque sempre novas ideias virão acrescentar algo de novo a debates como este, julgo que nesta obra Álvaro Cunhal avança muito em relação até a teses suas em velhos debates. É certamente uma visão abrangente, profunda e, para quem não o conheceu e quem dele fez uma ideia errada, surpreendentemente antidogmática do problema.
Diz ele sobre o debate forma/conteúdo:
«Contesta se e esquece se que, na apreciação da obra de arte, há duas realidades objectivas a considerar.
«Uma é que a arte está indissolúvel e inevitavelmente ligada à vida social, que a obra de arte é um elemento integrante da sociedade, e que numa obra de arte existem reflexos e significações da vida social explicitados ou não. Esta realidade tem sido sintetizada com a expressão "conteúdo" da obra de arte.
«Outra realidade objectiva é que na obra de arte a forma é um elemento básico do valor estético.
«O mal é que a querela forma/conteúdo, que se trava ao longo dos anos no plano ideológico, na crítica e no comportamento, cristalizou as mais das vezes em conflitos irredutíveis que dificultaram e impediram um debate suficientemente esclarecedor».
E afirma mais adiante: «Não terminou tal querela. É inevitável que continue. O necessário, essencial, indispensável, é que se rejeite e se supere de vez o dogmatismo e a intolerância.
«Uma das suas mais claras expressões consistiu e consiste em negar o valor estético a obras inseridas numa tendência ou estilo contrário ou diferente ao que cada qual defende ou prefere.(...) É necessário reflectir serenamente sobre tais conceitos e atitudes.»
Termino com esta citação de Álvaro Cunhal, que aqui repito, como um apelo à pesquisa sem preconceitos e à análise sem adulterações de um período da nossa História tão rico na luta abrangente do novo contra o velho, não só no plano político, mas também no plano da arte, da literatura e da cultura em geral.
Um período a que José Dias Coelho deu a sua contribuição como revolucionário e como artista. Neste dia em que se encerra a sua exposição que este Museu do Neo Realismo em boa hora organizou, quero deixar aqui expresso o meu testemunho, não só como sua companheira mas também como camarada de luta. A sua acção constituiu um importante factor de alargamento da frente intelectual antifascista, que nunca permitiu espaço de manobra e de credibilidade aos intelectuais servidores do regime.
(*) Intervenção no encerramento da exposição de José Dias Coelho organizada pelo Museu do Neo-Realismo