A viagem do Presidente à Madeira

O itinerário do bilhete-postal

Anselmo Dias
O Presidente da República deslocou-se entre 14 e 19 de Abril à Região Autónoma da Madeira (RAM), tendo-a percorrido. Tratou-se de uma viagem no mínimo insólita, tão insólita quanto a declaração do Presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, ao declarar, no encerramento do Congresso da Anafre, que Alberto João Jardim era «...um exemplo supremo da vida democrática do que é um político combativo...» Acontece que, em 1992, o mesmo Jaime Gama, de quem um seu correligionário dizia que «...era um peixe de águas profundas...» associava Alberto João Jardim «às atrocidades do Bokassa das ilhas...»
Bom, deixemos estas coerentes piruetas e voltemos à viagem de Cavaco Silva, salientando, desde logo, uma contradição no espaço de dois dias. Com efeito, na véspera da partida, era dito que o Presidente da República «...terá oportunidade de percorrer a Região Autónoma e de elogiar o progresso e o desenvolvimento económico nela alcançados...» o que levou, muito justamente, uma jornalista do Diário de Notícias a escrever, em 14/4, que «…o balanço da visita está feito antes desta acontecer...». No dia seguinte, não sabemos se devido à observação atrás referida, à chegada ao Funchal o Presidente declarou que iria «conhecer de perto a realidade madeirense», alterando a expressão verbal do passado pelo futuro. Que realidade iria, pois, conhecer Cavaco Silva num itinerário que o já referido Diário de Noticias dizia, fundamentadamente, equivaler a dar «... a volta à ilha num entra e sai de túneis...»?
O Presidente, se quisesse conhecer a Madeira, teria escolhido dois itinerários em consonância com aquilo que o PCP tem vindo a referir desde há muito tempo: um de natureza geográfica, outro de natureza temática.
O de natureza geográfica, em vez do «entrar e sair de túneis», passaria pelos bairros da Nogueira, na Camacha; por São Gonçalo e Santa Maria, no Funchal; Bairro da Malvinas, Ribeiro Real, Quinta do Leme, bem como às zonas do Galeão, Curral Velho, Corujeiras, aos sítios dos Terreiros, Ribeira de Tábua, Chote no Jardim da Serra, entre outros locais, onde o Presidente poderia aquilatar facilmente a diferença que medeia entre a propaganda jardinística e o quotidiano de uma parte muito significativa da população madeirense, vítima dos baixos rendimentos, da exclusão social, de um urbanismo degradado, da desertificação e do abandono associados ao envelhecimento e à pobreza.
Não foi este o itinerário escolhido, mas dois outros:
– O do bilhete-postal, das paisagens idílicas ofertadas pela natureza;
– O do betão, obra humana que certamente glorifica a nossa engenharia, mas sobretudo beneficia a conta corrente da oligarquia instalada, à custa de infra-estruturas hiper dimensionadas, em nome de um novo-riquismo e em detrimento daquilo que devia ter sido uma política de criteriosos investimentos, que apostasse num outro modelo de desenvolvimento potenciador de uma economia sustentada na produção de bens transaccionáveis, com elevado valor acrescentado, na perspectiva do bem público, de salários dignos e de condições de trabalho consentâneas com os direitos de cidadania expressos na nossa Constituição.
O itinerário de natureza temática, para o qual o PCP tem vindo, reiteradamente, a chamar a atenção passaria pelos oito temas que a seguir se destacam.

Má distribuição da riqueza produzida

A RAM é a região mais assimétrica do país, se tivermos em conta a relação entre a riqueza criada (PIB) e o valor global das remunerações devidas ao factor trabalho.
De acordo com as Contas Regionais de 2004 (dados constantes no Anuário Estatístico da RAM), para um Produto Interno Bruto de 4156 milhões de euros atribuídos à RAM correspondeu um volume de remunerações de 1780 milhões de euros, ou seja, coube ao factor «remunerações» a percentagem de 42,8%.
No mesmo ano, relativamente ao Continente, os valores foram, respectivamente, de 13 6921 e 68 479 milhões de euros, o que significa que aqui as remunerações corresponderam a 50% do PIB, valor que, sendo superior ao da RAM, continua a ser baixo e a evidenciar um elevado grau de exploração dos trabalhadores por parte do patronato.
Confrontando os dados atrás referidos constatamos que a distribuição da riqueza produzida é, na RAM, ainda mais desfavorável para quem trabalha e, reflexamente, mais favorável para o capital. Para que na RAM houvesse uma correspondência com o que se passa no Continente seria necessário haver, desde já, um aumento generalizado a todos os trabalhadores por conta de outrem na ordem dos 247 milhões de euros, valor correspondente ao que o capital, na RAM, arrecada a mais, tendo como referência, como atrás já foi referido, a relação entre a riqueza criada (o PIB) e o valor global dos salários.
Importa salientar que os últimos dados estatísticos nos dizem que o PIB per capita na Madeira era de 17 100 euros, contra uma média nacional de 13 700 euros, ou seja, a riqueza criada na RAM superava em cerca de 24% a média nacional. Face a tais valores era de esperar que o nível salarial e o índice de poder de compra na RAM acompanhassem a dimensão da riqueza criada, conforme teorizam e propagandeiam os detentores do poder poítico e económico em Portugal. Mas uma coisa é a demagogia daqueles que bolseiam que só se pode distribuir aquilo que se produz, e outra coisa bem diferente é a realidade. E a realidade na Madeira é esta: é a 2.ª região (NUTII) com o maior valor per capita tendo em atenção o respectivo PIB e, simultaneamente, uma das regiões mais pobres, como a seguir fica demonstrado.

Estrutura salarial dos trabalhadores por conta de outrem

De acordo com as Estatísticas do Emprego, reportadas ao 2.º trimestre de 2007, o rendimento salarial médio mensal líquido dos trabalhadores por conta de outrem, segundo a região de residência, NUTII, por sector de actividade principal, era a seguinte:
– Média nacional: 730 euros,
– Média da Madeira: 663 euros.
Isto significa que na Região Autónoma da Madeira, em termos médios salariais líquidos, a diferença, comparativamente à média do país, era inferior em 67 euros, o que, percentualmente, equivalia a cerca de 9%.
Mas se desagregarmos as diferenças pelos vários sectores de actividade e pelas sete regiões do país, então as diferenças, para menos, na RAM, são as seguintes:
Agricultura, silvicultura e pescas: menos 71 euros, 51 euros e 7 euros, comparativamente ao Alentejo, Açores e Algarve;
Indústria, construção, energia e água: menos 221 euros e 17 euros, comparativamente, a Lisboa e Alentejo;
Serviços: menos 282 euros, 83 euros 50 euros, 39 euros e 17 euros, comparativamente, a Lisboa, Algarve, Centro, Açores, Norte e Alentejo.
Os dados atrás referidos evidenciam que as maiores diferenças residem no sector de serviços, ou seja, nos sectores predominantes da economia da região, sectores esses onde a mão-de-obra feminina é maioritária.

Estrutura salarial das mulheres

Os dados disponíveis relativamente aos salários dos trabalhadores do sector privado da economia, desagregados pelos três grandes ramos de actividade (primário, secundário e terciário), bem como a nível concelhio, reportam-se a Outubro de 2005.
Dada a pouca expressão, na RAM, do trabalho feminino por conta de outrem na agricultura e na indústria, abordaremos apenas os salários das trabalhadoras no sector terciário, sector onde labutam mais de 2/3 das mulheres.
Que salários usufruíam tais trabalhadoras? Em Outubro de 2005, o ganho médio mensal bruto (remuneração base acrescida de subsídios e trabalho extraordinário, tudo isto em valores ilíquidos) era, na RAM, comparativamente à média salarial das mulheres do Continente, inferior em cerca de 73 euros, valor que é em muito ultrapassado se a comparação for feita entre os salários dos homens e das mulheres na RAM.
Aqui a diferença salarial é de 279 euros, ou seja, os homens dos sectores de serviços ganham mais do que as mulheres dos sectores de serviços, 279 euros, valor que sofre alterações se as diferenças forem a nível concelhio.
Vejamos então, em euros, tais diferenças: Porto Santo, 368; Machico, 313; Santa Cruz, 291; Calheta, 286; Porto Moniz, 277; Funchal, 272; Santana, 243; São Vicente, 193; Ribeira Brava, 166; Câmara de Lobos, 145 e Ponta do Sol, 109. Em termos médios a diferença é de 27%. Como se explicam tais diferenças? A diferença salarial entre homens e mulheres é uma realidade transversal a toda a sociedade portuguesa (e não só) mas que na RAM assume especial relevância.

A ausência de apoios sociais às famílias

Acresce à má distribuição da riqueza um outro gravíssimo problema, este relativamente à estrutura organizacional das empresas. Na RAM há, comparativamente com o que se passa no resto do País, uma excessiva concentração de trabalhadores, sobretudo mulheres, no escalão a que o patronato considera «trabalhadores não qualificados». Na RAM essa percentagem é de 17,3%, enquanto no Continente a percentagem, já de si elevada, é de 11,6%. Esta diferença é um verdadeiro absurdo, na medida em que a RAM tem, como já repetidamente informámos, um dos mais elevados PIB per capita. Não se compreende, pois, que numa região considerada rica, em termos produtivos, essa riqueza seja produzida com trabalhadores não qualificados, cuja maior parte diz respeito às mulheres trabalhadoras, vítimas maiores dos baixos salários. Paralelamente ao excessivo peso dos «trabalhadores não qualificados» verifica-se uma grande rarefacção nos lugares de chefia, nas funções técnicas e nos lugares de nível intermédio, ou seja, a pirâmide organizacional das empresas da RAM tem um topo muito estreito e uma base muito alargada, esta última à custa do trabalho feminino.

A RAM reclama valorização das funções sociais do Estado

As diferenças atrás referidas impõem várias reflexões, uma das quais tem a ver com a estrutura familiar da RAM, cuja dimensão média ultrapassa a dimensão média do País. Com efeito, de acordo com os censos 2001, as famílias clássicas do País eram constituídas por 2,82 indivíduos, enquanto na Madeira esse número subia aos 3,33. A que propósito salientamos isto? Porque uma coisa é um salário ser dividido por 2,82 pessoas e outra coisa bem diferente é esse mesmo salário ser dividido por 3,33 pessoas.
Para se compreender, na sua plenitude, as consequências dos baixos salários associados à dimensão familiar façamos os seguintes cálculos. Dividamos os salários médios pela dimensão média das famílias. As conclusões desse cálculo levam-nos a dizer que, para uma família média na RAM usufruir de um rendimento médio nacional teria de ter um aumento na ordem dos 30%. Este é, também, em nossa opinião, um dos factores que explica o nível de pobreza existente na região, exemplarmente evidenciado no estudo do INE publicado em 31/3/2008, dedicado aos Orçamentos Familiares. Nesse estudo, na página 4, onde se analisa a despesa total média per capita, constata-se que a RAM detém o valor mais baixo do país, 5288 euros por ano, por pessoa, enquanto a média nacional é de 6993 euros por ano, por pessoa.
Estes últimos dados são a prova provada de que, a rendimentos iguais, por parte dos agregados familiares correspondem níveis diferentes de despesa per capita em função da dimensão do número de pessoas que compõem o respectivo agregado familiar. O que é que queremos dizer com isto? Queremos dizer que, num agregado familiar, à existência de filhos menores e de ascendentes idosos beneficiários de pensões e reformas, devia corresponder:
– Para as crianças e jovens: abonos de família mais elevados;
– Para os idosos: pensões mais altas.
A situação que se passa na RAM é, quanto a esta questão, exemplar, na medida em que o efeito conjugado dos baixos salários e das baixas prestações sociais, associados à dimensão das famílias, impunha a que na Madeira houvesse um acréscimo de 32% nos rendimentos para que, em média, cada família na RAM tivesse o mesmo nível de despesa idêntico à média do País.

Índice de poder de compra

De acordo com o estudo do INE sobre o poder de compra concelhio, reportado a 2005 (últimos dados disponíveis) verifica-se que, dos 11 concelhos da RAM, apenas dois (repetimos, dois) têm um poder de compra superior à média do País. Falamos do Funchal e do Porto Santo. Todos os restantes têm um poder de compra inferior, de acordo com os seguintes valores, tendo em atenção que é atribuído à média do País o valor 100:
– Entre o valor 90 e 100: Santa Cruz;
– Entre o valor 80 e 90; nenhum concelho;
– Entre o valor 70 e 80: nenhum concelho;
– Entre o valor 60 e 70: Machico e Ribeira Brava;
– Entre o valor 50 e 60: Calheta, Câmara de Lobos, Ponta do Sol, Porto Moniz, Santana e São Vicente.
Estes são, sem dúvida, a par do atrás referido, o conjunto de dados que melhor evidencia o enorme, o enormíssimo, bluff de que a uma maior produtividade e a um maior esforço na criação de riqueza corresponderá a um melhor nível de vida das populações. Se isto fosse verdade, na RAM não haveria 82% dos concelhos com índices de poder de compra inferiores à média do País, situação que Cavaco Silva, teve, obviamente, em consideração ao glorificar a «obra feita» pelo jardinismo, a fazer lembrar, com as devidas proporções, a glorificação que se fazia a Salazar por ter aumentado o stock de barras de ouro nos cofres do Banco de Portugal, num País em que uma parte significativa da população andava de pé descalço.

A pobreza na RAM

Mercê dos baixos salários e do facto do rendimento do trabalho ser dividido por uma estrutura familiar com mais componentes do que a estrutura média nacional, associado às baixas reformas, não é de estranhar que o número de beneficiários do rendimento social de inserção (RSI) seja substancialmente superior ao do Continente. Enquanto na Madeira há 39,5 beneficiários do RSI por 1000 habitantes, no Continente esse número é de 30,5. Concluindo: na Madeira, tendo em conta a sua população, há mais 30% de beneficiários do RSI, comparativamente ao Continente, o que não deixa de constituir um outro indicador sobre a dimensão da pobreza existente na RAM.

É necessário um outro modelo de desenvolvimento

Uma outra razão que explica a situação atrás referida diz respeito ao modelo de desenvolvimento da região. Há, com efeito, uma opção política na valorização de uma economia alicerçada na mono actividade ligada ao turismo, a que se associam a construção civil, o comércio e respectivos serviços de apoio, sectores todos eles vítimas dos baixos salários. Essa mono actividade evidencia-se no facto de, em cada três trabalhadores por conta de outrem do sector privado da economia, dois pertencerem ao sector terciário, percentagem que ainda será maior se tivermos em linha de conta os trabalhadores do sector público.
Os grandes sectores são, na área privada e no âmbito do trabalho por conta de outrem, de acordo com os Quadros de Pessoal, a construção civil, o comércio, a hotelaria, restaurantes e similares com cerca de 42 000 trabalhadores, valores que nós consideramos subavaliados mercê do facto de haver muitas empresas que não enviam ao Ministério do Trabalho os respectivos Quadros de Pessoal. Como as mulheres ocupam um espaço muito grande na hotelaria, restauração, comércio, limpeza industrial e na funções auxiliares da educação, saúde e acção social, e como a estes sectores correspondem baixos salários, daqui resulta que os salários das mulheres são os mais baixos, determinando na RAM uma forte influência, no sentido negativo, no índice de poder de compra, no nível de vida e, sobretudo, na dimensão da pobreza.
As mulheres, em todas as dinâmicas atrás referidas, são o elo mais fraco, mercê de um modelo de desenvolvimento que não lhes permite muita mobilidade social, claramente evidenciada no facto de, no conjunto de 112 profissões quantificadas e tipificadas pelos Censos de 2001, se verificar que 80% do emprego feminino está concentrado em apenas 12 profissões, predominantemente nas áreas atrás referidas. Há, contudo, a destacar o número significativo de mulheres no ensino (pré-primário, primário, 2.º e 3.º ciclos, bem como secundário) e no sector da enfermagem. Nestes últimos sectores a questão não se coloca tanto no valor absoluto do salário mas, antes, no lugar que as mulheres ocupam na estrutura dirigente e na própria dimensão da discriminação salarial, sabido, como se sabe, que nas profissões onde abundam os bacharelatos e as licenciaturas é onde existem, a nível do País, as maiores diferenças salariais, na ordem dos 30%.
Como se vê, excluindo o ensino e a saúde, a esmagadora maioria das profissões centra-se em sectores que o patronato considera «trabalho não qualificado», para o qual recusa salários dignos, não obstante os elevados lucros arrecadados pelo exercício desse mesmo trabalho. Há, pois, pelos dados disponíveis, um elevado potencial de luta pela dignificação salarial mas há, também, num plano superior de luta, uma exigência a fazer, no sentido da introdução de um outro modelo de desenvolvimento que potencie a instalação de indústrias não poluentes, alicerçadas em mais investigação, ciência e tecnologia potenciadoras de profissões mais qualificadas e remuneradas. A esta exigência de um novo paradigma de desenvolvimento deverá corresponder, reflexamente, uma postura firme na defesa dos postos de trabalho não permitindo que o desemprego evolua, como evoluiu, entre o 4.º trimestre de 2006 e 2007, na ordem dos 19%! Como se os baixos salários e a estrutura familiar já não fossem suficientes, eis um outro factor, o desemprego, a alimentar a elevada taxa de pobreza existente na região, chaga social silenciada pelo Presidente da República, não obstante a delegação do PCP lhe ter entregue, em mão, cópia de um estudo do ISCTE que, reportado a 2005, quantifica em cerca de 83 000 o número de madeirenses em risco de pobreza.


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