Os Trapos

Correia da Fonseca
Na passada segunda-feira, a TVI transmitiu uma reportagem acerca dos velhos portugueses. Os velhos são, de resto, tema que surge com alguma frequência na TV portuguesa, como aliás seria difícil não acontecer: constituem uma grande parte da população, um grande número deles vive em condições a que não será excessivo chamar desumanas, são de facto um clamoroso escândalo nacional que a generalidade dos que (ainda)não são velhos faz por esquecer. Para ajudar essa conveniente amnésia, uma espécie de «ar do tempo» encarrega-se de tornar generalizada, se não quase consensual, a convicção de que não há nada a fazer por eles, os velhos, porque são muitos, e também o sentimento de que não merecem muito porque são obsoletos, teimosos e difíceis de aturar. Por vezes, chega a planar discretamente na opinião pública não-expressa um secreto lamento por ter sido conseguido um pouco por todo o lado, e portanto também por cá, um significativo aumento da chamada esperança de vida, e o curioso é que esse ligeiríssimo toque de pesar parece estar presente, embora só de modo implícito, até em declarações oficiais ou oficiosas. Entende-se: sem tantos velhos carenciados e doentes seriam menos pesados os encargos com a Saúde e a Segurança Social, e se eles, os velhos, tivessem o bom-senso de falecer como nos bons velhos tempos, o OE seria decerto mais fácil de equilibrar. Convirá notar, de resto, que neste ponto se observa uma certa convergência de aspirações entre os mais pragmáticos sectores do Estado e os próprios velhos, pois não são poucos de entre estes os que muitas vezes desejam a morte como única escapatória às condições de sobrevivência a que estão condenados.

Isto é, lixo

Sem que tenha sido invulgarmente brilhante, a reportagem de Alexandra Borges que a TVI transmitiu veio lembrar alguns dados fundamentais para que entendamos o que está a acontecer aos velhos portugueses. Disse-nos ela que só nos últimos cinco anos cerca de vinte e cinco mil velhos portugueses foram vítimas de maus tratos. Que se saiba, é claro. Que um milhão e trezentos mil, números redondos, recebem reformas ou pensões mensais inferiores a quatrocentos euros. Que a mensalidade a pagar num «lar» com alvará anda à roda de mil e quinhentos euros, o que torna esses lugares (aliás quase sempre um pouco sinistros mesmo quando decentes) completamente inatingíveis para a maioria, independentemente do conhecido desequilíbrio entre a procura e a oferta disponível. Que, como terrível sinal do desafecto e do desprezo com que os velhos são encarados entre nós, há famílias que ao partirem de férias depositam o cão no canil e o velho no hospital. Que só no ano de 2006 foram contabilizados mais de dois mil velhos abandonados pela família. Que na área de Lisboa são cerca de sessenta mil os velhos que estão praticamente prisioneiros na sua própria casa, em andares altos sem elevador, e ali esperam a morte ou a ambulância. E a reportagem ouviu relatos. A mãe que, praticamente sequestrada, acabou por ter medo dos maus tratos da filha e, contudo, sente-se embaraçada ao falar disso porque «mesmo quando os filhos não prestam sempre são os nossos filhos». O reformado que, um dia, vendo que o valor da reforma que recebia o obrigava a optar entre pagar uma renda-de-casa e comprar comida, escolheu viver na rua e matar a fome. A mulher que para não faltar ao marido, acamado há três anos, com os medicamentos de que ele precisa, vê acumular-se a dívida na farmácia. E casos como estes, mais muitos outros que a reportagem não teve tempo de contar nem aqui haveria espaço para registar, é preciso multiplicá-los por muitos milhares para chegarmos a uma ideia aproximada do que é ser velho em Portugal, hoje, trinta e quatro anos depois de 74. A própria jornalista ajudou-nos a entendê-lo: «-...é um pesadelo», disse ela; e o título da reportagem, «Velhos são os trapos», já nos encaminhara para esse entendimento. Só que, ao invés do sentido da antiga frase, que rejeita a qualificação de «velho» quando aplicada a pessoas e a reserva para essas coisas desvaliosas que serão os trapos, a reportagem denuncia o fundamental: que no Portugal de 2008 os velhos são tratados como trapos. Isto é, como lixo.


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