Essa palavra fascismo…

Filipe Diniz
A escritora americana Naomi Wolf publicou há quase um ano (Guardian, 23-04-07) um curioso texto: «Fascist America, in 10 easy steps» («Uma América fascista, em 10 etapas simples»). O tema tem sido abordado, com bastante mais rigor, aliás, por várias figuras da esquerda norte-americana. Mas esta autora é aquilo a que costuma chamar-se «francamente insuspeita»: foi uma colaboradora próxima de Clinton, em cujo círculo continua a situar-se. A sua matriz ideológica leva-a a amalgamar ditaduras fascistas e alguns regimes socialistas, mas no fim de contas essa grelha de análise talvez torne ainda mais significativa a posição que assume. Por outro lado, e embora o omita cuidadosamente, nas situações que denuncia no seu artigo houve e há responsabilidades partilhadas por ambas as forças hegemónicas no sistema político norte-americano, nomeadamente no plano político e no plano legislativo.
A tese desenvolvida no artigo é relativamente linear. Começa por constatar que, «de Hitler a Pinochet», a história mostra que existe um padrão comum nas etapas seguidas no processo de destruição das «liberdades constitucionais», e que Bush e a sua administração parecem estar a segui-las uma a uma.
Em seguida, enuncia aquelas que, em sua opinião, são as 10 etapas fundamentais no estabelecimento de um regime fascista: 1 - Invocar um terrível inimigo interno e externo; 2 - Criar um gulag; 3 - Criar uma tropa de choque («a thug caste»); 4 - Montar um sistema de vigilância interna; 5 - Perseguir grupos de cidadãos; 6 - Empreender detenções e libertações arbitrárias; 7 - Ameaçar individualidades em posições chave; 8 - Controlar a informação; 9 - Fazer equivaler discordância a traição; 10 - Suspender as regras da legalidade.
Essa lista é documentada com a enumeração de acções legislativas e administrativas empreendidas pela administração Bush, de factos e acontecimentos da vida pública norte-americana que, em sua opinião, constituem graves indícios e alterações da ordem constitucional e permitem fazer um paralelo histórico com os processos que, no decurso do século XX, conduziram à instauração de ditaduras fascistas. Do «Patriot Act» à prisão de Guantanamo, das forças militarizadas de mercenários e seguranças privados a grupos de choque de jovens «republicanos», dos colossais sistemas de devassa das comunicações e da vida privada à infiltração de agentes em todo o tipo de organizações pacifistas, ecologistas e outras, da elaboração de listas de «potenciais terroristas» que incluem toda e qualquer manifestação de discordância com a Administração Bush e a sua política aos despedimentos por opinião discordante, nomeadamente no meio universitário, as pressões sobre os jornalistas, incluindo a agressão, a prisão e até o assassinato, a concentração de poder legislativo, executivo e judiciário na esfera presidencial, a possibilidade de recurso às Forças Armadas para missões de segurança interna, são invocados pela autora para traçar o retrato de uns EUA em que todas as etapas de fascização estão em vias de ser percorridas.
Tratando-se de uma autora que nada tem a ver com o marxismo, a sua concepção de fascismo centra-se na identificação dos mecanismos de repressão, violência e controlo social e político antidemocráticos em desenvolvimento e não investiga o seu carácter de classe nem o contexto social e económico que os gera.
Também no nosso país as palavras fascismo, fascista, fascizante têm vindo a ressurgir. Como acontece frequentemente, largos meses depois de dirigentes do PCP (sabe-se como é prática do PCP pesar cuidadosamente as palavras) lançarem o alerta, e serem por esse motivo zurzidos na comunicação social que temos, elas reaparecem em zonas de opinião ideologicamente distantes: Pacheco Pereira trata o frenesim repressivo da ASAE de «fascismo higiénico», António Barreto interroga-se se Sócrates é ou não fascista, e por aí fora. Por isso talvez tenha interesse reflectir sobre esses termos, porque a matéria é das mais sérias.
Para os portugueses não deveriam existir dúvidas acerca do que se diz quando se fala de fascismo. Mas a verdade é que existem, em grande parte devido ao persistente e continuado esforço de branqueamento do regime salazarista, à impunidade e à posterior ocultação dos seus crimes (e agora, ao que parece, à sua relativização quantitativa), à falsificação do que foi a sua natureza e a sua acção, ao serviço de quem existiu. Com recurso ao truque de identificar como fascistas apenas as formas de organização exteriores dos regimes de Mussolini e de Hitler, há historiadores que concluem que em Portugal não existiu um regime com idênticas características e, portanto, com idêntico programa social, económico e político: não é fascismo, é «Estado Novo». Ignoram a lúcida análise, já com mais de 70 anos, que Dimitrov formula no Relatório ao VII Congresso Mundial da Internacional Comunista (Agosto, 1935): «o desenvolvimento do fascismo e da própria ditadura fascista reveste-se em diferentes países de formas diversas, consoante as condições históricas, sociais e económicas, consoante as particularidades nacionais e a situação internacional de cada país». Mas em todos os casos, «não se trata da substituição corrente de um governo burguês por um outro, mas da substituição de uma forma de organização da dominação de classe da burguesia – a democracia burguesa – por uma outra forma dessa dominação, a ditadura terrorista declarada». Ditadura que se exerce como a mais brutal expressão da violência antidemocrática, anti-operária, anticomunista.
Uma outra falsificação, esta de carácter estritamente ideológico, se esforça também por elidir a condenação e a denúncia específica dos regimes fascistas, regimes que, como em Portugal, se constituíram e agiram como «ditadura terrorista dos monopólios e latifundiários, aliados ao imperialismo». Trata-se da amálgama, sob a designação de totalitários, de regimes fascistas e de regimes socialistas. Sob essa amálgama, e procurando identificar em ambos formas de organização do Estado igualmente repressivas e antidemocráticas, do que se trata é precisamente de ocultar a natureza do fascismo como instrumento a que o capitalismo recorreu e recorre, sempre que o tome como necessário.
A pergunta que se pode colocar é exactamente essa. É, nas condições actuais, necessário ao capitalismo esse recurso? Não está hoje suficientemente enfraquecido e desarticulado o movimento operário internacional? Não desapareceu a União Soviética, pesadelo e terror dos capitalistas ao longo de quase todo o século XX? São ineficazes os modelos de concertação inter-imperialistas para a dominação capitalista global?
No que se refere ao nosso país, de há muito que o PCP formulou uma tese fundamental: em Portugal, um regime democrático e o poder do grande capital monopolista excluem-se mutuamente. Ou o regime democrático liquida o poder dos monopólios, ou os monopólios liquidam o regime democrático. A natureza do regime fascista confirmou essa tese, a Revolução de Abril voltou a confirmá-la, o longo processo contra-revolucionário confirmou-a e valida-a nos dias de hoje como uma evidência flagrante. A questão que se coloca não reside na interrogação de Barreto sobre se Sócrates é fascista ou não. A questão reside em que sucessivos governos, de que o actual é certamente o mais virulento, vêm empreendendo uma política de restauração do integral domínio do grande capital sobre a sociedade portuguesa, e que esse domínio não pode ser exercido senão de forma antidemocrática. Não pode ser exercido sem a liquidação dos direitos e liberdades dos trabalhadores, seja pela via da legislação laboral, seja pela via da precariedade, dos despedimentos arbitrários, da repressão directa nos locais de trabalho e do ataque às suas organizações de classe. Não pode ser exercido sem um clima de crescente restrição das liberdades públicas, das liberdades de reunião, de associação e de manifestação, da intimidação e da criação de um ambiente de repressão e temor, que invade tanto o espaço público como devassa o espaço privado. Não pode ser exercido sem o ataque ao carácter democrático das instituições, seja pela via da liquidação da sua representatividade democrática, seja pela via do seu desprestígio e corrupção, que as tornam odiosas perante o povo. Não pode ser exercido sem a liquidação da liberdade de informação, sem a transformação dos grandes meios de comunicação social em máquinas de propaganda, sem qualquer controvérsia ou crítica, da ideologia e do poder dominante. Não pode ser exercido sem a constituição de um poder de Estado concentrado, arbitrário e repressivo, sem escrutínio nem controle democrático. Não pode ser exercido sem a constituição de uma casta social e política moralmente corrupta e inteiramente desprovida de escrúpulos, como a que já hoje, todos os dias, se exibe com toda a arrogância na comunicação social dominante. Não pode ser exercido sem tornar a obsessão anticomunista e antidemocrática em ideologia e programa de Estado, sem o ataque ao PCP, ataque cuja exasperação constitui, só por si, o mais claro sintoma do carácter fascizante da marcha reaccionária há longo tempo em curso.
Tal como a revolução portuguesa o foi, também o processo contra-revolucionário está ainda inacabado. Se fosse concluído, nada restaria do regime democrático.
Nenhum democrata poderá hoje ignorar esse facto. E seria um erro tão grande como o de subestimar as ameaças que se acumulam o de não procurar compreender e aprender com as trágicas lições da história. Ouçamos ainda Dimitrov, no Relatório citado, comentando a ideia simplista de que a chegada do fascismo ao poder resultaria da decisão de «o instaurar, em tal data», tomada por «um qualquer comité do capital financeiro». Lembra o grande revolucionário que não pode ser subestimada, no processo de instauração de uma ditadura fascista, a importância de que se revestem as medidas reaccionárias tomadas pela burguesia em regimes de democracia burguesa, independentemente das eventuais contradições que existam (e existem) no seu próprio campo. E as medidas reaccionárias que enuncia, naquele momento histórico, são de natureza idêntica às que vêm hoje sendo tomadas.
Cometeria um erro semelhante ao dos historiadores que não conseguem identificar no salazarismo um regime fascista quem imaginasse que, nos dias de hoje, um tal regime se apresentaria da mesma forma que os dos anos 30 do século passado ou mesmo de outros mais recentes. A ameaça do presente não é a do regresso a um passado formalmente idêntico. É de que regressem, sob outras formas, as mesmas condições do passado: no plano nacional a opressão política, social, económica e cultural, o atraso e a miséria, a total submissão ao imperialismo, no plano internacional a dominação, a agressão e a guerra como norma nas relações internacionais.
Estas palavras não descrevem toda a realidade presente. Mas descrevem já parte importante dela.


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