A criação inesquecível do Henrique Viana

O Calinas, no «Àdoque»

Silva Heitor
«...e sabe que o hoje não é se não a lembrança do ontem e o amanhã o sonho do hoje»

(Kahlil Gibran «O Profeta»)


Estávamos no Martim Moniz, em 1974, e a um canto, sobre um socalco, a poente, nesse mesmo ano nascia um teatro que se chamava « Àdoque». Constituído por um grupo de actores reunidos em cooperativa, num velho barracão que adaptaram, propunha se fazer teatro de revista – Revista Portuguesa –, «certos de que nela se consubstanciam as componentes exactas de um genuíno espectáculo popular português», como referia mais tarde o Francisco Nicholson, um dos fundadores do grupo. Vasto era o elenco que o
constituía, com autores como o Ary dos Santos, Nicholson, Gonçalves Preto e o próprio Henrique Viana que aí faz a sua estreia como tal. E como tal, também, deu realce à inesquecível figura de o «Calinas», que já havia surgido, incipiente, na rádio e numa rábula em «A Grande Cegada». Aqui, porém, no «Ádoque», deu nome e corpo à revista «Ó Calinas, Cala a Boca», que havia de surgir em 29 de Julho de 1977.
Quem era, porém, afinal esse «Calinas»? Existia, garante nos o seu criador. Uma figura típica de português, muito lisboeta, um pouco o «Chico Esperto» dos nossos dias? Com pouca instrução, mas alguma «lábia», «marialva e garanhão», assobiando às garotas e enfeitando se «com o pior mau gosto, nas suas fatiotas espampanantes». É do próprio jornal do «Àdoque», número único, nascido com a estreia da revista «Ó Calinas cala a boca», que respigamos alguns tópicos da sua figura existencial. E não só na revista a que deu o nome, como «antes do mais, lá fora, na Mouraria como em Alfama, no Bairro Alto ou em Alcântara ou na Madragoa: o Calinas é irremediável e incuravelmente alfacinha».
«É fadista, o Calinas? A seu jeito também anda nos fados, curtindo nas cantigas as suas frustrações de boémio mais atirado a fadistices que ao trabalho».
«É reaccionário, o Calinas? Claro que não, sendo ele, como é, o produto acabado de uma sociedade construída nos artifícios de um cosmopolitismo burguês, afanosamente preocupado com as grandes fachadas e ignorando por completo o que e quem, no seu interior, fervilhando numa vida de misérias, tinha como horizonte, para lá dos bairros de lata e da quase idêntica promiscuidade dos típicos bairros populares, todo um caminho de dificuldades para se sentir cidadão na sua própria cidade».
E, continuando a citar a descrição que dele faz, supomos que o seu próprio criador, no referido jornal:
«O Calinas não é um tipo a regenerar, mas a recuperar. A recuperar para a vida de uma cidade a que ele pertence e cujos problemas, agora, vai aprendendo a saber também discutir. E a lutar pelas suas soluções, ainda que a cidade continue e gritar lhe: Ó Calinas, cala a boca!»
Que riqueza de personagem, de caricatura, esta que foi criada pelo Henrique Viana. Burlesca? Certamente, mas em quem vale a pena pensar. Porque, em nosso entender, não está longe duma figura Bordaleana actualizada. Haverá, por isso, realmente, ainda hoje, alguns «Calinas», por esta nossa cidade, devidamente adaptados ao meio em que actualmente se vive, com outra fachada e outras formas de actuação? Talvez o Henrique Viana dissesse que sim.
Henrique dos Santos Viana nasceu a 29 de Junho de 1936, em Lisboa, na Freguesia de S. Catarina. Iniciou a sua carreira nesse alfobre de conhecidos actores que foi a «Guilherme Cossoul», pisou alguns dos nossos grandes palcos e, embora sem grande destaque, contracenou com alguns dos grandes actores do nosso Teatro. Ultimamente fez muito cinema, destacando se nos melhores filmes portugueses. Era na televisão, todavia, onde mais recentemente aparecia. E aí permaneceu, até ao fim dos seus dias, que ocorreu a 4 de Julho do corrente ano.


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