Um olhar para trás
Tentar avaliar uma série antes que ela termine é uma aposta arriscada: nunca se sabe se ao dobrar a esquina de um episódio ela não vai revelar, de súbito, uma vertente antes insuspeitada e que, em hipótese pessimista, lançará sobre todo o seu passado um hálito de impostura quando não de infâmia. Por outro lado, porém, a avaliação posterior ao termo da série implica a desistência relativamente a um dos seus objectivos, e não certamente o menos importante, que será o de entregar ao leitor/telespectador, em tempo útil, dados que o apoiem na escolha ou na rejeição de programas que valha a pena ver. É verdade que há séries que nem justificam o embaraço nem sequer a atenção da crítica: pelos momentos iniciais, ou mesmo antes deles, o rodar da carruagem denuncia o que lá vai dentro. Outras, porém, agudizam a questão. São as melhores, por isso são também as mais raras, as que desde os primeiros episódios justificam uma chamada de atenção e mesmo um aplauso. Contudo, perante elas, quem deva comentá-las e tenha destas coisas algumas amargas experiências, fica sempre intimidado pela eventualidade de na semana seguinte poder ficar claro que aplaudira, e por isso tacitamente recomendara, um produto afinal envenenado. Sente-se, pois, de algum modo tolhido embora sinta o dever de quebrar o silêncio prudente, pois bem se sabe que há prudências que, por excesso, se tornam suicidárias. É neste quadro que cabe, mais coisa menos coisa, a relação desta coluna com a série «Conta-me Como Foi» que a RTP1 tem vindo a transmitir num percurso singularmente marcado por ziguezagues horários que em dado momento ameaçaram ter algum efeito de descredibilização da série aos olhos do público. Pois é natural entender-se que não se trata assim um trabalho com méritos, e méritos que o situam bem acima do comum.
Serena e plausível
«Conta-me Como Foi» é a adaptação à realidade quotidiana portuguesa dos anos 60 da série espanhola «Cuenta-me Como Pasó» que não conheço e bem queria conhecer, não tanto para compará-la com o trabalho português quanto para saber como a TVE solucionou ou rodeou as enormes dificuldades que a Espanha de décadas atrás apresenta para a sua fixação numa série para transmissão agora, num país onde o franquismo ainda é objecto de vénias e mesuras. Quanto a «Conta-me Como Foi», importa dizer que não tem vindo a portar-se mal: a vida quotidiana de uma família da pequena burguesia habitando um bairro modesto e suficientemente penetrada pela atmosfera do tempo fascista para que quem viveu esses dias reconheça ali uma suficiente veracidade. Embora em tom menor, até já perpassaram na narrativa sinais da Resistência, e nos episódios mais recentes a luta universitária contra a guerra colonial e a ditadura tornou-se um dos eixos da evocação. O ambiente opressivo no interior de uma pequena empresa (uma grande empresa criaria talvez outras e mais difíceis exigências) reforça a veracidade social da série. Mas ela vive também das pequeninas e por vezes comoventes coisas que se passam no interior de uma família onde muito se trabalha porque o dinheiro é pouco e alguma coisa se sonha porque o sonho é uma função irreprimível. Uma peripécia recentemente narrada, a de um prémio grande da lotaria nacional acendeu um fogacho de alegria e depois se revelou ser um equívoco, pareceu demasiado rocambolesco para o tom geral, sereno e plausível. Mas o que talvez seja mais imperioso dizer por agora é que a efectiva qualidade de «Conta-me Como Foi» não teria sido possível sem um notável trabalho de actores, como destaque para Rita Blanco e Miguel Guilherme, simplesmente perfeitos, muito bem acompanhados por toda a restante equipa. Resta seguir com algum optimismo, mas também com cuidado (o nome de Helena Matos como «consultora histórica» justifica-o), o modo como a série vai prosseguir. Se tudo correr bem, como é esperável, a série pode ficar como uma marco branco no caminho cinzentão que a RTP tem percorrido nos últimos tempos. E não deixa de ser curioso e até quase irónico que «Conta-me Como Foi», para lá do merecimento, beneficie no espírito do público do pesado silêncio informativo que a estação pública de TV tem mantido ao longo dos anos sobre a vida em Portugal sob o fascismo.
Serena e plausível
«Conta-me Como Foi» é a adaptação à realidade quotidiana portuguesa dos anos 60 da série espanhola «Cuenta-me Como Pasó» que não conheço e bem queria conhecer, não tanto para compará-la com o trabalho português quanto para saber como a TVE solucionou ou rodeou as enormes dificuldades que a Espanha de décadas atrás apresenta para a sua fixação numa série para transmissão agora, num país onde o franquismo ainda é objecto de vénias e mesuras. Quanto a «Conta-me Como Foi», importa dizer que não tem vindo a portar-se mal: a vida quotidiana de uma família da pequena burguesia habitando um bairro modesto e suficientemente penetrada pela atmosfera do tempo fascista para que quem viveu esses dias reconheça ali uma suficiente veracidade. Embora em tom menor, até já perpassaram na narrativa sinais da Resistência, e nos episódios mais recentes a luta universitária contra a guerra colonial e a ditadura tornou-se um dos eixos da evocação. O ambiente opressivo no interior de uma pequena empresa (uma grande empresa criaria talvez outras e mais difíceis exigências) reforça a veracidade social da série. Mas ela vive também das pequeninas e por vezes comoventes coisas que se passam no interior de uma família onde muito se trabalha porque o dinheiro é pouco e alguma coisa se sonha porque o sonho é uma função irreprimível. Uma peripécia recentemente narrada, a de um prémio grande da lotaria nacional acendeu um fogacho de alegria e depois se revelou ser um equívoco, pareceu demasiado rocambolesco para o tom geral, sereno e plausível. Mas o que talvez seja mais imperioso dizer por agora é que a efectiva qualidade de «Conta-me Como Foi» não teria sido possível sem um notável trabalho de actores, como destaque para Rita Blanco e Miguel Guilherme, simplesmente perfeitos, muito bem acompanhados por toda a restante equipa. Resta seguir com algum optimismo, mas também com cuidado (o nome de Helena Matos como «consultora histórica» justifica-o), o modo como a série vai prosseguir. Se tudo correr bem, como é esperável, a série pode ficar como uma marco branco no caminho cinzentão que a RTP tem percorrido nos últimos tempos. E não deixa de ser curioso e até quase irónico que «Conta-me Como Foi», para lá do merecimento, beneficie no espírito do público do pesado silêncio informativo que a estação pública de TV tem mantido ao longo dos anos sobre a vida em Portugal sob o fascismo.