Babilónia internetiana

Francisco Silva
Os utilizadores da Internet localizados por esse mundo fora já podem experimentar a utilização do seu nome escrito na sua língua de origem, anuncia o ICANN(1), entidade que «lançou um teste global de nomes de domínio internacionalizados»-, ou seja, dos IDNs(2) . Quando se diz língua de origem, está a referir-se à escrita com os caracteres da língua de origem; e, para já são - e não é mau que a iniciativa de teste referida, atendendo à complexidade da questão, bem como ao nível de conhecimento técnico-científico exigido, para trabalho desenvolvido em relativamente pouco tempo - são, dizíamos, 11 as escritas e respectivas línguas em jogo: árabe/árabe; árabe/persa; chinês tradicional/chinês; chinês simplificado/chinês, cirílico/russo, devanagari/hindu, grego/grego, hangul/coreano, hebraico/iídiche, kanji hirigana, katakana/japonês e tamil/tamil (espero não ter cometido erros graves na transcrição dos nomes das escritas e das línguas).
A entidade referida, que lançou este ensaio de campo a nível mundial, o ICANN, é a organização a nível mundial responsável pela coordenação global do sistema de identificadores unívocos da Internet, sejam eles os nomes de domínio - em particular, os «domínios do nível de topo», como se sabe, são ou genéricos como: «.org»; «museum»; ou códigos de área geográficas, nomeadamente países, como: «pt»; «.be» -, sejam os endereços numéricos - números IP(3) - que são empregues para os computadores dirigirem-se uns aos outros através da Internet. Ora, sem uma gestão cuidada destes recursos identificadores - no seu conjunto conhecidos por «sistema de nomes de domínio» -, o funcionamento da Internet rapidamente perderia a sua estabilidade e, entre outros efeitos, os caminhos da floresta de utilização dos nomes de domínio perderiam fiabilidade, os utilizadores perder-se-iam nela num ápice.
Hoje existem muitas dezenas de milhões de nomes de domínio em todo o mundo e, regra geral, os mais de 1200 milhões de utilizadores da Internet podem alcançá-los desde que consigam decifrar ou escrever os caracteres de que os nomes de domínio são compostos - e, por exemplo, não se julgue que não constitui barreira nenhuma para as centenas de milhões de utilizadores chineses escrever «pt» nestes, para nós, tão corriqueiros caracteres latinos!
De começo - ainda agora poucos anos faz, e um começo já dentro do século XXI -, quando esta questão dos IDNs começou a ser levantada, sobretudo de lá dos lados da Ásia - na China, na Coreia, no Japão, mas também envolvendo a língua de povos menos conhecidos da generalidade dos «ocidentais», nomeadamente o povo tamil (aliás, terá sido nesta língua que foi implementado pelo primeira vez, na Universidade de Singapura, um sistema precursor dos IDNs) -, houve bastante dificuldade em os do lado de cá, incluindo os cientistas e técnicos mais conhecidos - gurus - da Internet, entenderem esta questão em toda a sua extensão antropológica e política - pareciam chinesices a este «ocidentais»; ou seja aqueles que ainda constituíam a parte essencial dos cibernautas, ou que se imaginavam ainda como o centro destas coisas. Mais a mais, achavam - e muitos ainda acharão, mas deixaram de o expressar em público - que era um risco insuportável para o funcionamento da Internet.
Mas as coisas vão andando, inclusivamente porque os governos dos países mais interessados, nomeadamente asiáticos e árabes - uma boa parte da população mundial -, perceberam que tinham de fazer dos IDNs também uma sua bandeira.
Foi então iniciada em meados de Outubro de 2007 uma fase de ensaio de campo das normas que foram desenvolvidas com vista à utilização de tipos de escrita diferentes dos caracteres do alfabeto latino próprios da Civilização Ocidental, no caso presente, nos «domínio do nível de topo». A introdução completa dos IDNs permitirá que os utilizadores passem a escrever a totalidade de um nome de domínio empregando os caracteres da sua própria língua. Estes, até agora, só podiam ser escritos com caracteres do alfabeto latino. A implementação dos IDNs mudará de tal modo a situação que poderão passar a ser disponibilizados dezenas de milhares de caracteres.
Será que o Plano Tecnológico, que fez do inglês a sua bandeira - nem sequer cedilha, til, trema, outros acentos, sei lá, inclui -, terá que ser revisto para incluir estudos de chinês, árabe, cirílico e hindu?
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(1) ICANN - Internet Corporation for Assigned Names and Numbers

(2) IDN - Internationalized Domain Names

(3) IP - Internet Protocol


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