A Concordata como instrumento do Poder

Jorge Messias
Insistir neste tema nunca é de mais. Num Estado que se pretenda democrático qualquer Concordata é aberração. Com ela, negoceia-se a legalidade democrática que tem bases na vontade popular. Reduz-se a nada a Constituição da República que estabelece a separação dos poderes. Impõe-se grosseiramente o princípio da desigualdade. Subordina-se a dignidade do Estado aos interesses da Igreja. E abrem-se as portas aos negócios mais corruptos e às alianças ocultas que visam restabelecer as tiranias. Tudo isto se leu nas caras galhofeiras de Sócrates e de D. Policarpo, ao saírem da sua última reunião de amigos íntimos e de parceiros. Merece a pena observar-se o que então se passou.
O Plenário dos bispos que precedeu o «encontro de cavalheiros» destacou-se pelo seu secretismo. Não se conhece a sua verdadeira agenda de trabalhos, não foram publicadas conclusões, nem se realizou a habitual Conferência de Imprensa. Mas, aparentemente, foi do Plenário que deve ter saído a designação dos bispos que, três dias depois, se foram encontrar com Sócrates. Esses, já levavam na ponta da língua aquilo que iriam dizer. E é do conhecimento geral que nos debates a alto nível os dossiers, a argumentação, os cenários previsíveis, exigem uma longa preparação. Nada se faz em três dias.
Finda a reunião, tal como acontecera com o Plenário não houve comunicados, não foram divulgados os tópicos em debate, nem teve lugar qualquer «conferência de imprensa». O que se soube resultou de fugas de informação, de especulações e do «diz-se que disse». Montagens evidentes que, na previsão de cenários delicados, procuram estabelecer imunidades para os bispos e para os políticos envolvidos. Se ninguém reagir, as decisões mantêm-se. Caso contrário, há sempre lugar para as desmentir. Sócrates terá garantido ao cardeal-patriarca que enquanto a nova versão da Concordata não for regulamentada é a Concordata de 1940 que vigora. Ficou escrito nos jornais e não foi desmentido.

As manobras escaldantes

A Concordata de 1940 é claramente fascista, e outra coisa não seria de esperar. Consagra o «princípio dos chefes», quer no Estado, quer na Igreja. Cria sólidas bases para o enriquecimento da Igreja, tal como posteriormente aconteceu. Num Estado laico impõe o Catolicismo como religião oficial. Ao longo de 64 anos foi este o código das relações entre o Estado português, a igreja local e o Vaticano. Com uma ligeira alteração do texto, em 1975, respeitante à matéria do casamento e do divórcio.
A Concordata de 1940 contém, em apêndice, um outro documento importante, o «Acordo Missionário», a aplicar nas dioceses e circunscrições católicas das colónias. Descreve-se nele, minuciosamente, o modo de organização missionária (que teria de ser reconhecida e autorizada, em cada caso, pelo governo português), estabelecem-se os quadros hierárquicos das missões, ligam-se às dioceses coloniais «os acordos políticos celebrados entre a Igreja e o Estado português, a nível europeu», decreta-se que nenhum bispo ou arcebispo residencial poderá ser nomeado sem o beneplácito do Poder sediado em Lisboa (ou seja, sem informação
favorável da PIDE), reconhece-se que as missões católicas devem ser subsidiadas pelo Estado, garante-se-lhes o direito ao estabelecimento de Fundações, de escolas, colégios, institutos elementares de formação, seminários, catecumenatos, ambulâncias e hospitais, etc.. Lisboa tudo pagava. Era já, nos longínquos idos de 40, a aplicação prática do princípio da subsidaridade que só depois surgiu (dá-me o teu poder que eu faço aquilo que tu querias fazer).
Depois, correram os anos, os nazis perderam a guerra, veio o 25 de Abril e as declarações de independência dos territórios coloniais; o «Acordo Missionário» foi abandonado mas não extinto.
Caso se confirme que Sócrates disse o que disse e que Policarpo aplaudiu e abençoou, ficaremos perante um gravíssimo atentado ao direito e à soberania dos povos. Um simples primeiro-ministro passa por cima de leis aprovadas democraticamente, despreza as vitórias de Abril e retoma disposições fascistas. Calca a pés juntos direitos soberanos de outros e Estados para voltar a proclamar direitos e privilégios missionários que já não fazem qualquer sentido.
O facto é que se aproxima a realização da Cimeira Europa/África, durante o consulado português da União Europeia. A preceder a cimeira, decorre o I Congresso da África Lusófona. Sem dúvida que o Governo de Sócrates terá de mostrar serviço aos seus patrões. D. José Policarpo acompanha-o nestas preocupações e sabe que a Igreja perdeu e continua a perder influência no Continente africano.
Mas estas razões são as «deles» e não as «nossas». Tem de saber-se o que é que os bispos querem, afinal, e se estão prontos a repetir as promessas de Sócrates. A ocasião é boa para se apurarem as verdades.
Porém, para saber é preciso perguntar.


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