Depois do «Live Earth»

Correia da Fonseca
Aqui se registou há uma semana um lamento com apetência para se tornar protesto: os temas graves e urgentes das alterações climáticas, da degradação ambiental que já claramente ameaça a termo não muito distante a própria sobrevivência da vida humana no planeta vorazmente explorado e espoliado, são em regra abordados, quando o são, em programas transmitidos para além da fronteira horária da meia-noite. Assim, as tomadas de consciências e os sinais de alarme que poderão estar-lhes associados ficam condenados a ter audiências tão escassas que bem se pode recear que é como se os programas não fossem transmitidos. Pois bem; apenas uma semana volvida, a RTP transmitiu ao longo de mais de 24 horas o «Live Earth», megaconcerto dos que parece terem como esperança e convicção que a música pop/rock e seus arredores, transmitida para uma teleplateia potencial de muitos milhões, terá a virtude de mobilizar as gentes, de emitir apelos que serão ouvidos e porventura acatados pelos que têm poderes de decisão. No mínimo, ficou assim quebrada a regra que se denunciara sem prejuízo da admissão de eventuais excepções: a tal fronteira da meia-noite não fez qualquer sentido relativamente a uma emissão que esteve no ar mais que o tempo despendido pela Terra para dar uma voltinha sobre si própria. Quanto aos resultados desse gigantesco esforço, é mais que provável que nunca venham a ser conhecidos com um mínimo de certezas mas, de qualquer modo, não parece legítimo nem simpático que se ponham em dúvida as excelentes intenções dos que o desencadearam e nele se empenharam. Dirão talvez alguns, suspeitosos, que a iniciativa se mostrou muito próxima de Al Gore, mas na verdade nada indicia que o ex e talvez futuro candidato à presidência dos Estados Unidos não se importe com as condições de sobrevivência dos seus netos e bisnetos. Dirão outros, mais lusitanamente, que aquilo lhes lembrou demasiado o Natal dos Hospitais, iniciativa que concilia os corações excelentes com o legítimo desejo de aproveitamento de uma boleia mediática que favoreça a popularidade do artista ou obste ao seu tendencial esquecimento. Mas os que porventura digam coisas dessas levam longe de mais o seu cepticismo, o melhor será esquecê-los.

A doença e a causa

Em todo o caso, uma coisa parece certa: contra as ameaças terríveis que impendem sobre o planeta, as devastações de diversa ordem que já estão em curso e são irreversíveis, tocar e cantar não são remédios bastantes mesmo se tomados por aquilo que assumidamente querem ser, isto é, uma veemente chamada de atenção, uma verdadeira mobilização geral de vontades. Por um lado, acontece que há vontades e vontades: há a minha e a do leitor que por inadvertência lê esta coluna, ambos seguramente homens de boa-vontade no sentido bíblico e em qualquer outro, e há a vontade de um sujeito chamado George W. Bush e dos chefões do complexo industrial-militar dos Estados Unidos. Poderá dizer qualquer coisa como «- cá vem este implicar com os Estados Unidos!». Pois é verdade, venho, mas o caso é que não tenho outro remédio. Um dos pecados mortais deste simpático «Live Earth» é ter desligado a devastação que tem andado a assolar o planeta do sistema económico-financeiro que comprovadamente tem a suprema responsabilidade por essa devastação e de que os States são líderes e símbolos. Para combater uma doença é preciso conhecer-lhe as causas, o «Live Earth» esqueceu-se das causas da doença que pôs o planeta às portas da morte. E não se tente confundir desenvolvimento com a gula cega do capitalismo, o seu total inescrúpulo perante a preservação do planeta, tanta quanto a indiferença que o caracteriza perante os direitos fundamentais do próprio homem. Um desenvolvimento verdadeiramente sustentável terá de ter planeamentos, conciliações, gestões democráticas centralizadas, um ror de coisas que os bonzos e os devotos do capitalismo abominam porque lhes lembram caminhos que os apavoram e odeiam. Retomando o fio à nossa meada, digamos que o «Live Earth» se esqueceu tanto das causas que houve quem ficasse abalado quando foi dito que a iniciativa implicara o gasto de imensa quantidade de energia e assim contribuíra para agravar os problemas que denunciava. Mas não sei de quem tenha perguntado qual foi, naquelas mesmas 24 horas ou um pouco mais, o volume de carburantes queimados e outras formas de energias gastas pelo aparelho militar norte-americano em terra, no ar e no mar, em operações de guerra e também nas sempre esquecidas operações permanentes de «guarda e prevenção». E essa é apenas uma parcela no rol das responsabilidades norte-americanas nesta matéria. Engana-se quem veja aqui um sintoma mais de «anti-americanismo primário», eu até acho bonito o hino dos Estados Unidos. Mas no mundo actual e quanto a esta questão, os States não são «os suspeitos do costume», são os criminosos sempre reincidentes.


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