A Igreja que «fala português»
A Igreja Católica fecha-se de tal modo sobre si mesma que cria uma situação confusa, de difícil leitura, na qual abundam as notícias soltas e falta uma linha condutora com sentido lógico transparente. Será isto possível? Todos nós sabemos que não. A omissão é voluntária. O Vaticano tem uma clara noção das orientações e dos caminhos para onde quer conduzir a sua igreja e o mundo.
Quando Ratzinger foi eleito papa pelos cardeais, houve quem antecipasse o restabelecimento da Inquisição e o reacendimento das fogueiras dos autos-de-fé. Esta visão das coisas peca por ser simplista e ingénua. A igreja ultraconservadora que Bento XVI conduz cultiva os tesouros da contradição. É nessa área que põe à prova as suas enormes potencialidades. Em nome da vida, proíbe às católicas a interrupção voluntária da gravidez; mas cala-se quando os genocídios e a miséria beneficiam o seu campo de interesses. Declara-se «perita em humanidades» enquanto contempla, impávida e serena, o terrorismo de Estado, o cavar de fossos entre pobres e ricos, a agressão que destrói as vidas de milhões de seres, os bloqueios económicos, o desemprego e a recusa do acto clínico de eutanásia desejada por doentes em fase terminal. Em África (só para se dar um exemplo de casos considerados normais, vividos em situações de paz relativa), nos países subsaharianos mais de 40% dos habitantes vivem abaixo da linha de pobreza. São regiões cujas riquezas naturais vão engrossar as fortunas dos grandes capitalistas. Mas que dizer-se quando à fome e à doença se juntam a guerra e o pavor das mortes mais atrozes? Casos bem conhecidos, como os do Darfur, do Congo, da Serra Leoa ou da Nigéria.
O Vaticano cala-se e participa no negócio. Este tipo de igreja ambiciosa de lucros e mais-valias foi consagrado pelos recentes papas quando reconheceram a existência, a seus olhos, de um capitalismo humanizado, respeitador dos direitos dos homens, em contraste com um outro modelo de capitalismo, esse mau ou selvagem, que a hierarquia se limita a condenar espiritualmente e de forma imprecisa. É uma situação cómoda, de trampolim em dois sentidos, que permite aos papas saltar de conceito em conceito, conforme o tempo e a ocasião. Quando a dúvida é grande, remetem-se ao silêncio e observam o que se passa. Talvez que a actual mudez eclesiástica disfarce uma grande angústia perante o futuro dos perigosos malabarismos do capitalismo global.
A igreja lusófona
Neste ponto do desenrolar da história é inevitável que se tropece na famosa e arriscada presidência portuguesa da União Europeia. Se a aventura resultar com o apoio da igreja, então o Vaticano poderá ter resolvido alguns dos seus problemas centrais. Mas aventura é aventura e a igreja católica é segura. Pode construir, para os outros, perspectivas ilusórias, mas defende com grande realismo os seus interesses próprios. Será esta, eventualmente, a razão das ambiguidades que já se vão notando entre as atitudes mais prudentes que os bispos assumem e a insensatez do anarquismo aventureirista de José Sócrates e dos seus sequazes.
Vistas as coisas em termos numéricos e estatísticos, dir-se-á que a igreja lusófona tem nas suas mãos o poder de decisão que permitirá ao capitalismo global instalar-se definitivamente nos países onde se fala português. São teoricamente católicos 93% dos portugueses; 85% dos brasileiros; 93% dos timorenses; 59% dos angolanos; 23% dos moçambicanos e, em média, entre 10% e 20% de outros povos africanos lusófonos. Seguramente, mais de 200 milhões de cidadãos.
Mas a própria Igreja sorri cepticamente perante estes valores. Não são os burocratas que poderão avaliar as dimensões reais da Catolicidade. Dez milhões, em Portugal, quando todos sabem que o país é cada vez mais laico? Cento e setenta milhões de crentes, no Brasil? Não é novidade que, lá, a igreja católica perde seguidores a uma velocidade alucinante. Oitocentos mil católicos, em Timor? Talvez que neste caso as estimativas sejam, culturalmente, mais correctas. Mas, de uma maneira ou de outra, o país vai desenvolver-se economicamente. Isto é inevitável e será a igreja católica a principal lesada por essa emancipação. No mundo actual não pode haver lugar para igrejas do tipo timorense ou filipino.
Outra questão é a evidência da não existência entre os católicos de um modelo único de Igreja. Por muito que isto pese a Bento XVI, não são apenas uma as igrejas dos povos das favelas, do Amazonas ou do Paraná. Nem os comportamentos são idênticos no universo católico que vai de Benguela ao Lobito ou do Niassa a Bissau.
A aliança capitalista entre a Igreja e a Globalização será, em si mesma uma aventura de alto risco. Se o capitalismo perder ou não for capaz de vencer, a Igreja que fará?
Quando Ratzinger foi eleito papa pelos cardeais, houve quem antecipasse o restabelecimento da Inquisição e o reacendimento das fogueiras dos autos-de-fé. Esta visão das coisas peca por ser simplista e ingénua. A igreja ultraconservadora que Bento XVI conduz cultiva os tesouros da contradição. É nessa área que põe à prova as suas enormes potencialidades. Em nome da vida, proíbe às católicas a interrupção voluntária da gravidez; mas cala-se quando os genocídios e a miséria beneficiam o seu campo de interesses. Declara-se «perita em humanidades» enquanto contempla, impávida e serena, o terrorismo de Estado, o cavar de fossos entre pobres e ricos, a agressão que destrói as vidas de milhões de seres, os bloqueios económicos, o desemprego e a recusa do acto clínico de eutanásia desejada por doentes em fase terminal. Em África (só para se dar um exemplo de casos considerados normais, vividos em situações de paz relativa), nos países subsaharianos mais de 40% dos habitantes vivem abaixo da linha de pobreza. São regiões cujas riquezas naturais vão engrossar as fortunas dos grandes capitalistas. Mas que dizer-se quando à fome e à doença se juntam a guerra e o pavor das mortes mais atrozes? Casos bem conhecidos, como os do Darfur, do Congo, da Serra Leoa ou da Nigéria.
O Vaticano cala-se e participa no negócio. Este tipo de igreja ambiciosa de lucros e mais-valias foi consagrado pelos recentes papas quando reconheceram a existência, a seus olhos, de um capitalismo humanizado, respeitador dos direitos dos homens, em contraste com um outro modelo de capitalismo, esse mau ou selvagem, que a hierarquia se limita a condenar espiritualmente e de forma imprecisa. É uma situação cómoda, de trampolim em dois sentidos, que permite aos papas saltar de conceito em conceito, conforme o tempo e a ocasião. Quando a dúvida é grande, remetem-se ao silêncio e observam o que se passa. Talvez que a actual mudez eclesiástica disfarce uma grande angústia perante o futuro dos perigosos malabarismos do capitalismo global.
A igreja lusófona
Neste ponto do desenrolar da história é inevitável que se tropece na famosa e arriscada presidência portuguesa da União Europeia. Se a aventura resultar com o apoio da igreja, então o Vaticano poderá ter resolvido alguns dos seus problemas centrais. Mas aventura é aventura e a igreja católica é segura. Pode construir, para os outros, perspectivas ilusórias, mas defende com grande realismo os seus interesses próprios. Será esta, eventualmente, a razão das ambiguidades que já se vão notando entre as atitudes mais prudentes que os bispos assumem e a insensatez do anarquismo aventureirista de José Sócrates e dos seus sequazes.
Vistas as coisas em termos numéricos e estatísticos, dir-se-á que a igreja lusófona tem nas suas mãos o poder de decisão que permitirá ao capitalismo global instalar-se definitivamente nos países onde se fala português. São teoricamente católicos 93% dos portugueses; 85% dos brasileiros; 93% dos timorenses; 59% dos angolanos; 23% dos moçambicanos e, em média, entre 10% e 20% de outros povos africanos lusófonos. Seguramente, mais de 200 milhões de cidadãos.
Mas a própria Igreja sorri cepticamente perante estes valores. Não são os burocratas que poderão avaliar as dimensões reais da Catolicidade. Dez milhões, em Portugal, quando todos sabem que o país é cada vez mais laico? Cento e setenta milhões de crentes, no Brasil? Não é novidade que, lá, a igreja católica perde seguidores a uma velocidade alucinante. Oitocentos mil católicos, em Timor? Talvez que neste caso as estimativas sejam, culturalmente, mais correctas. Mas, de uma maneira ou de outra, o país vai desenvolver-se economicamente. Isto é inevitável e será a igreja católica a principal lesada por essa emancipação. No mundo actual não pode haver lugar para igrejas do tipo timorense ou filipino.
Outra questão é a evidência da não existência entre os católicos de um modelo único de Igreja. Por muito que isto pese a Bento XVI, não são apenas uma as igrejas dos povos das favelas, do Amazonas ou do Paraná. Nem os comportamentos são idênticos no universo católico que vai de Benguela ao Lobito ou do Niassa a Bissau.
A aliança capitalista entre a Igreja e a Globalização será, em si mesma uma aventura de alto risco. Se o capitalismo perder ou não for capaz de vencer, a Igreja que fará?