O clima a desoras
Estava anunciado um programa sobre o clima, e logo fiquei com vontade de não o deixar escapar. Mas havia uma dificuldade: a transmissão seria lá para depois da meia-noite, acabaria depois da uma da madrugada, e um homem normal tem de levantar-se cedo em dia útil, há trabalhos que o esperam, há horários a cumprir, e apetece pouco cortar nas horas de sono. Calculo, naturalmente, que o que acontece comigo acontece com muitos milhares de outros. Ou milhões, a julgar pelos números da população activa em que se inclui, suponho, o mais de meio milhão de desempregados, em princípio na situação de não-actividade transitório, que não parece que sejam capazes de dormir até tarde apesar de não haver para eles horários imperativos: bem se sabe que as angústias não facilitam o sono, além de que a busca mais ou menos ansiosa de um emprego também exige que um homem ou uma mulher se levantem cedo e saiam para a rua. À procura. Enfim, a colocação de um programa para lá da fronteira horária da meia-noite não facilita nada o seu visionamento, bem pelo contrário. Em compensação, porém, facilita outras coisas: por exemplo, facilita que a RTP, se o caso se passar com a RTP, possa apregoar que transmitiu isto e aquilo, possa incluir certos programas nas estatisticazinhas que em princípio contribuem para o seu «retrato», sem que a esmagadora maioria dos telespectadores lhes tenha posto a vista em cima. E, pensando bem, é o que tem vindo a acontecer com programas bem mais importantes que os que preenchem o «prime time», seja por terem uma quantidade cultural que não anda por aí aos pontapés (excepto, já se vê, os pontapés que a própria RTP lhes aplica) seja por abordarem temas de grande importância. Entre estes, e na primeira linha, está tudo quanto diz respeito ao clima e às mutações climáticas em curso. Veja-se, por exemplo, que andam para aí a dizer que os seus netos, e é claro que também os netos dos leitores que eventualmente se disponham a ler estas duas colunas, já quase não terão água para beber se persistirem em viver aqui na Península Ibérica. Se outros motivos não houvesse, e há-os, este seria bastante para que me interessasse por todos os programas que melhor ou pior, isso depois se veria, tenham a ver com o assunto. Assim se entenderá, creio, que leve um bocado a mal que a RTP deporte para as madrugadas (e, quando não assim, para a «2», como se pretendesse que o caso passasse despercebido) programas sobre o tema.
Pelos olhos adentro
Aliás, confesso-o, situações destas ou com estas parecidas dão para despertar desconfianças aos que têm alguma vocação para serem desconfiados, pelo menos em certas matérias. E eu tenho-a, a essa vocação, sendo que a nebulosa das questões climáticas é uma dessas matérias. Dir-se-ia que há quem não tenha grande vontade de que se fale nela nos media, que muita gente pense nela e porventura comece a fazer perguntas, a discorrer. É certo que a ofensiva Al Gore quebrou um pouco essa espécie de conspiração do silêncio, mas é preciso atender a que o homem é norte-americano e que mesmo assim a TV portuguesa não lhe ligou importância por aí além quando ele passou por cá a vender a sua palestra. Pois bem: com tudo isto, sucedeu-me o inevitável: comecei a desconfiar. Tanto quanto sei, e é claro que sei muito pouco, nisto da degradação climática à escala planetária, dos enormes riscos que se formam não só para a Península Ibérica mas também para todo o globo, os Estados Unidos têm pesadas responsabilidades. E agradeço que não se tome isto como mais um sinal de anti-americanismo, mesmo agora lembrei que Al Gore é americano. Mas basta lembrar Quioto, o protocolo, a recusa de Bush em assiná-lo, as «razões» que para tanto invocou. De resto, tal responsabilidade não decorre do facto de os States serem os States: decorre, sim, de serem o país onde está sediado o capitalismo mais poderoso, mais agressivo, mais ceguinho para as consequências da sua própria gula. Mete-se pelos olhos do entendimento adentro que um planeta já em grave perigo onde a regra dominante é a de que cada um pode fazer o que muito bem lhe convier para amealhar mais lucros, e isto depois de estar averiguadíssimo que a sobre-industrialização sem freio, sem coordenação e sem cuidados é o verdadeiro motor de muita desgraça ambiental passada, presente e futura, é uma gravíssima ameaça. Acontece, porém, que esse processo verdadeiramente feroz está no âmago do neoliberalismo que se tornou profissão de fé obrigatória no Ocidente Atlântico, muitíssimo democrático e livre. Fico a pensar, desconfiado: querem ver que isso tem a ver com a rarefacção de programas acerca das questões ambientais em canal mais frequentado e a horas decentes?
Pelos olhos adentro
Aliás, confesso-o, situações destas ou com estas parecidas dão para despertar desconfianças aos que têm alguma vocação para serem desconfiados, pelo menos em certas matérias. E eu tenho-a, a essa vocação, sendo que a nebulosa das questões climáticas é uma dessas matérias. Dir-se-ia que há quem não tenha grande vontade de que se fale nela nos media, que muita gente pense nela e porventura comece a fazer perguntas, a discorrer. É certo que a ofensiva Al Gore quebrou um pouco essa espécie de conspiração do silêncio, mas é preciso atender a que o homem é norte-americano e que mesmo assim a TV portuguesa não lhe ligou importância por aí além quando ele passou por cá a vender a sua palestra. Pois bem: com tudo isto, sucedeu-me o inevitável: comecei a desconfiar. Tanto quanto sei, e é claro que sei muito pouco, nisto da degradação climática à escala planetária, dos enormes riscos que se formam não só para a Península Ibérica mas também para todo o globo, os Estados Unidos têm pesadas responsabilidades. E agradeço que não se tome isto como mais um sinal de anti-americanismo, mesmo agora lembrei que Al Gore é americano. Mas basta lembrar Quioto, o protocolo, a recusa de Bush em assiná-lo, as «razões» que para tanto invocou. De resto, tal responsabilidade não decorre do facto de os States serem os States: decorre, sim, de serem o país onde está sediado o capitalismo mais poderoso, mais agressivo, mais ceguinho para as consequências da sua própria gula. Mete-se pelos olhos do entendimento adentro que um planeta já em grave perigo onde a regra dominante é a de que cada um pode fazer o que muito bem lhe convier para amealhar mais lucros, e isto depois de estar averiguadíssimo que a sobre-industrialização sem freio, sem coordenação e sem cuidados é o verdadeiro motor de muita desgraça ambiental passada, presente e futura, é uma gravíssima ameaça. Acontece, porém, que esse processo verdadeiramente feroz está no âmago do neoliberalismo que se tornou profissão de fé obrigatória no Ocidente Atlântico, muitíssimo democrático e livre. Fico a pensar, desconfiado: querem ver que isso tem a ver com a rarefacção de programas acerca das questões ambientais em canal mais frequentado e a horas decentes?