Aprofundar a vertente cultural da democracia
A crise nas instituições e organismos do Estado com responsabilidades na área da Cultura atingiu, nos últimos tempos, pontos de ruptura. São sintomas disso a ameaça de paralisia no funcionamento dos museus e as deprimentes «novelas» da demissão do director artístico do Teatro de S. Carlos e das vergonhosas cedências do Governo PS (em prejuízo do interesse público) a Joe Berardo, no negócio em torno da colecção de arte do «benemérito» comendador e do espaço público em que será exibida, o Centro Cultural de Belém.
Mas outros traços negativos afectam esta área: a desregulação do mercado do livro e do audio-visual (falência de livrarias, ditadura das grandes superfícies, elevado preço dos livros e dos produtos audio-visuais), a indigência do panorama da exibição cinematográfica, o desinvestimento em políticas consequentes no que respeita à preservação do Património, à defesa e afirmação da Língua e da Cultura Portuguesas, ao apoio ao ensino artístico, ao teatro e à produção audio-visual independentes – para não falar da ofensiva neoliberal contra o Ensino Superior público e dos cortes nos orçamentos das instituições (no quadro dessa grande farsa que é o chamado Processo de Bolonha) ou ainda de algumas das perniciosas medidas do Ministério da Educação, como a secundarização da formação artística e as alterações curriculares que implicam a desvalorização das Humanidades (Filosofia, Literatura Portuguesa, História).
O subfinanciamento crónico e a incompetência, a par de políticas neoliberais e economicistas que subalternizam a área da Cultura, encontram-se na origem desta crise, com visíveis efeitos, por exemplo, na actividade e estatuto sócio-económico dos agentes culturais.
Exemplos encontramo-los também a nível local: veja-se a paralisia na área da Cultura numa cidade como o Porto (e recorde-se um caso paradigmático: a entrega da gestão do teatro municipal Rivoli a privados – numa lógica que é também a de «pão e circo» para o povo – com o consequente despedimento dos seus funcionários). Uma situação parcialmente compensada pela actividade da Casa da Música e da Fundação de Serralves, as quais parecem porém coagidas a reger-se por uma lógica em que a Cultura raras vezes deixa de ser encarada como uma área de mercado e como espectáculo, submetida aos sacrossantos princípios (e gostos) que condicionam a grande máquina dos circuitos internacionais da arte contemporânea e dos espectáculos musicais.
Enquanto força política com indesmentível potencial de intervenção, quer em termos institucionais, quer no plano social, o PCP propõe-se debater estas e outras questões, elaborar um diagnóstico dos problemas e discutir soluções possíveis e formas de atacar a crise generalizada que afecta esta área. Para tal tem trabalhado a Comissão Nacional para a área da Cultura que organiza, em 26 de Maio de 2007, no Anfiteatro da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, um Encontro Nacional do PCP sobre Cultura.
Questões que afectam o mundo
Num espaço de debate como este, importará contudo analisar outras questões que afectam o mundo contemporâneo e se prendem com a acção cultural e com o papel dos intelectuais e artistas neste quadro (o Anteprojecto de Resolução Política do Encontro, em discussão nas organizações do Partido, não passa aliás à margem desses temas).
É que, convém recordá-lo, a «nova ordem social» construída pela globalização capitalista e inspirada pelo neoliberalismo não se limita a dispor de aparelhos militares ou paramilitares e judiciais; ela recorre também a uma elite de intelectuais. Comandada pelo poder financeiro, a globalização ganhou forma e substância graças às revoluções tecnológica e informática, nas quais essa elite – enquadrada com frequência pela universidade, por fundações ou centros de investigação – desempenhou papel determinante.
Muito embora a direita possua ao seu serviço intelectuais que dela mais ou menos se reclamam, a matriz de muitos outros é aquilo a que poderíamos chamar um campo progressista e até de esquerda. Cindido entre a necessidade de «adaptação» aos «novos tempos» e a perda de privilégios resultante de uma oposição consequente à «nova ordem social», o intelectual tem optado muitas vezes pela primeira via, colhendo, em conformidade, as ««dádivas» que o sistema tem para lhe oferecer: o subsídio que condiciona, a posição de chefia, o prémio ou o privilégio. Nesta deriva, tendem a ficar na sombra, sob a máscara da «modernidade» com que o intelectual a si mesmo por vezes se justifica, atitudes acentuadamente individualistas, que encaram o presente como único futuro possível e as produções artísticas e científicas como tendo, exclusivamente, um fim em si mesmas, alheias à circulação das ideologias e às tensões sociais (e não se pretenda ler nestas palavras uma subalternização da fundamental dimensão estética, no que respeita por exemplo à leitura e avaliação das obras de arte).
É sabido, por outro lado, como o desprestígio social e as relações laborais precárias ameaçam hoje largas camadas de diplomados e recém-diplomados a que se convencionou chamar também «intelectuais». Quando os agentes do poder económico e político lhes acenam com perspectivas de «valorização» social e económica, não são poucos todavia os que sucumbem a esta sedução – o que tem implicado, com frequência crescente, uma atitude de submissão aos ditames desse mesmo poder e uma permeabilidade ao conformismo.
Ofensiva sem precedentes
Neste quadro, importa analisar as razões profundas da gradual deslocação de intelectuais para o campo neoliberal – indissociáveis das contradições do capitalismo, dos avanços da direita e das próprias debilidades do combate por uma democracia avançada nos planos social, económico, político e cultural. E em face da crise social provocada pelo sistema capitalista, interessa repensar os modos de captação das camadas intelectuais quer para o campo da solidariedade na luta anti-capitalista, quer para o projecto de construção de uma sociedade alternativa.
Sempre existiram momentos na História em que imperativos morais e éticos, de fundas raízes humanistas, estiveram na base de posições solidárias e de corajosa resistência por parte dos homens e mulheres das artes, da cultura, da ciência, de tantos outros domínios da actividade intelectual. A história do movimento comunista e operário e a da resistência antifascista em Portugal impuseram exemplos que urge estudar e valorizar. Os protagonistas do neo-realismo (e não só) nas artes e nas letras, e personalidades como Bento de Jesus Caraça, Maria Lamas, Ruy Luís Gomes, José Morgado, Armando de Castro, Fernando Lopes Graça, Óscar Lopes e tantos outros, erguem-se, para o futuro, como figuras da intelectualidade e da resistência. Em contextos particularmente adversos, souberam tornar indissociáveis, na sua acção, o trabalho científico, de produção cultural ou artística, e uma intervenção cívica coerente. E muitos souberam articular cultura das humanidades, cultura científica e leitura do mundo e da dinâmica social, sem deixarem de encarar as classes não hegemónicas da população como produtoras, elas próprias, de cultura e saberes múltiplos.
O tempo em que vivemos confronta-nos com uma ofensiva política sem precedentes contra os direitos das pessoas, em áreas como o Trabalho e a Segurança Social, a Saúde, a Educação e a Cultura, a Justiça e o Ambiente. Conduzida em Portugal pelo actual governo do PS (com a conivência activa do Presidente da República e dando corpo aos interesses do poder económico, a coberto de insidiosas campanhas de intoxicação ideológica e propagandística), tal ofensiva tem corroído o Estado social, pondo em causa conquistas civilizacionais e ameaçando, neste momento, os próprios fundamentos do regime democrático tal como o conhecemos. As vítimas principais desta ofensiva são os trabalhadores e os pensionistas, os desempregados e os jovens. Mas as próprias camadas intelectuais sentem, como nunca, os efeitos desastrosos desta política.
São estas e outras questões que o Encontro Nacional do PCP sobre Cultura não poderá deixar de abordar, tendo em mira um horizonte que sempre foi o nosso: o do aprofundamento da vertente cultural da democracia; e a cultura, a arte, a ciência encaradas como espaços de emancipação, transformação e liberdade.
* Direcção do Sector Intelectual do Porto do PCP; Comissão Nacional de Cultura do PCP
O subfinanciamento crónico e a incompetência, a par de políticas neoliberais e economicistas que subalternizam a área da Cultura, encontram-se na origem desta crise, com visíveis efeitos, por exemplo, na actividade e estatuto sócio-económico dos agentes culturais.
Exemplos encontramo-los também a nível local: veja-se a paralisia na área da Cultura numa cidade como o Porto (e recorde-se um caso paradigmático: a entrega da gestão do teatro municipal Rivoli a privados – numa lógica que é também a de «pão e circo» para o povo – com o consequente despedimento dos seus funcionários). Uma situação parcialmente compensada pela actividade da Casa da Música e da Fundação de Serralves, as quais parecem porém coagidas a reger-se por uma lógica em que a Cultura raras vezes deixa de ser encarada como uma área de mercado e como espectáculo, submetida aos sacrossantos princípios (e gostos) que condicionam a grande máquina dos circuitos internacionais da arte contemporânea e dos espectáculos musicais.
Enquanto força política com indesmentível potencial de intervenção, quer em termos institucionais, quer no plano social, o PCP propõe-se debater estas e outras questões, elaborar um diagnóstico dos problemas e discutir soluções possíveis e formas de atacar a crise generalizada que afecta esta área. Para tal tem trabalhado a Comissão Nacional para a área da Cultura que organiza, em 26 de Maio de 2007, no Anfiteatro da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, um Encontro Nacional do PCP sobre Cultura.
Questões que afectam o mundo
Num espaço de debate como este, importará contudo analisar outras questões que afectam o mundo contemporâneo e se prendem com a acção cultural e com o papel dos intelectuais e artistas neste quadro (o Anteprojecto de Resolução Política do Encontro, em discussão nas organizações do Partido, não passa aliás à margem desses temas).
É que, convém recordá-lo, a «nova ordem social» construída pela globalização capitalista e inspirada pelo neoliberalismo não se limita a dispor de aparelhos militares ou paramilitares e judiciais; ela recorre também a uma elite de intelectuais. Comandada pelo poder financeiro, a globalização ganhou forma e substância graças às revoluções tecnológica e informática, nas quais essa elite – enquadrada com frequência pela universidade, por fundações ou centros de investigação – desempenhou papel determinante.
Muito embora a direita possua ao seu serviço intelectuais que dela mais ou menos se reclamam, a matriz de muitos outros é aquilo a que poderíamos chamar um campo progressista e até de esquerda. Cindido entre a necessidade de «adaptação» aos «novos tempos» e a perda de privilégios resultante de uma oposição consequente à «nova ordem social», o intelectual tem optado muitas vezes pela primeira via, colhendo, em conformidade, as ««dádivas» que o sistema tem para lhe oferecer: o subsídio que condiciona, a posição de chefia, o prémio ou o privilégio. Nesta deriva, tendem a ficar na sombra, sob a máscara da «modernidade» com que o intelectual a si mesmo por vezes se justifica, atitudes acentuadamente individualistas, que encaram o presente como único futuro possível e as produções artísticas e científicas como tendo, exclusivamente, um fim em si mesmas, alheias à circulação das ideologias e às tensões sociais (e não se pretenda ler nestas palavras uma subalternização da fundamental dimensão estética, no que respeita por exemplo à leitura e avaliação das obras de arte).
É sabido, por outro lado, como o desprestígio social e as relações laborais precárias ameaçam hoje largas camadas de diplomados e recém-diplomados a que se convencionou chamar também «intelectuais». Quando os agentes do poder económico e político lhes acenam com perspectivas de «valorização» social e económica, não são poucos todavia os que sucumbem a esta sedução – o que tem implicado, com frequência crescente, uma atitude de submissão aos ditames desse mesmo poder e uma permeabilidade ao conformismo.
Ofensiva sem precedentes
Neste quadro, importa analisar as razões profundas da gradual deslocação de intelectuais para o campo neoliberal – indissociáveis das contradições do capitalismo, dos avanços da direita e das próprias debilidades do combate por uma democracia avançada nos planos social, económico, político e cultural. E em face da crise social provocada pelo sistema capitalista, interessa repensar os modos de captação das camadas intelectuais quer para o campo da solidariedade na luta anti-capitalista, quer para o projecto de construção de uma sociedade alternativa.
Sempre existiram momentos na História em que imperativos morais e éticos, de fundas raízes humanistas, estiveram na base de posições solidárias e de corajosa resistência por parte dos homens e mulheres das artes, da cultura, da ciência, de tantos outros domínios da actividade intelectual. A história do movimento comunista e operário e a da resistência antifascista em Portugal impuseram exemplos que urge estudar e valorizar. Os protagonistas do neo-realismo (e não só) nas artes e nas letras, e personalidades como Bento de Jesus Caraça, Maria Lamas, Ruy Luís Gomes, José Morgado, Armando de Castro, Fernando Lopes Graça, Óscar Lopes e tantos outros, erguem-se, para o futuro, como figuras da intelectualidade e da resistência. Em contextos particularmente adversos, souberam tornar indissociáveis, na sua acção, o trabalho científico, de produção cultural ou artística, e uma intervenção cívica coerente. E muitos souberam articular cultura das humanidades, cultura científica e leitura do mundo e da dinâmica social, sem deixarem de encarar as classes não hegemónicas da população como produtoras, elas próprias, de cultura e saberes múltiplos.
O tempo em que vivemos confronta-nos com uma ofensiva política sem precedentes contra os direitos das pessoas, em áreas como o Trabalho e a Segurança Social, a Saúde, a Educação e a Cultura, a Justiça e o Ambiente. Conduzida em Portugal pelo actual governo do PS (com a conivência activa do Presidente da República e dando corpo aos interesses do poder económico, a coberto de insidiosas campanhas de intoxicação ideológica e propagandística), tal ofensiva tem corroído o Estado social, pondo em causa conquistas civilizacionais e ameaçando, neste momento, os próprios fundamentos do regime democrático tal como o conhecemos. As vítimas principais desta ofensiva são os trabalhadores e os pensionistas, os desempregados e os jovens. Mas as próprias camadas intelectuais sentem, como nunca, os efeitos desastrosos desta política.
São estas e outras questões que o Encontro Nacional do PCP sobre Cultura não poderá deixar de abordar, tendo em mira um horizonte que sempre foi o nosso: o do aprofundamento da vertente cultural da democracia; e a cultura, a arte, a ciência encaradas como espaços de emancipação, transformação e liberdade.
* Direcção do Sector Intelectual do Porto do PCP; Comissão Nacional de Cultura do PCP