Uma questão de justiça
O debate actual acerca da interrupção voluntária da gravidez, até às 10 semanas, a pedido da mulher, coloca na ordem do dia a necessidade de intervir e tomar posição de forma séria e responsável, sobre um problema de natureza social e política, mas com fortes implicações filosóficas, teológicas e culturais que determinam comportamentos e atitudes marcadas pelas ideias dominantes da sociedade em que vivemos.
Não basta estar pelo «Sim» Dia 11 de Fevereiro é preciso ir votar!
O aborto sendo considerado crime público, introduz o estigma da mulher criminosa e condena aquelas que o praticam, cuja denúncia as faz passar pela vergonha de verem a sua vida exposta na praça pública, de forma ultrajante para a sua dignidade pessoal.
O Avante! foi, entretanto, falar com quatro pessoas que, com histórias diferentes, defendem uma lei que despenalize o aborto e acabe com a criminalização das mulheres que necessitem de recorrer a este meio, mas que não impõe a ninguém o recurso a esta prática.
Invasão da vida íntima da mulher
Acusada por querer ser livre
Quem, por alguma razão, tenciona votar «Não», no próximo dia 11 de Fevereiro, jamais poderá compreender a dor, a amargura e a revolta que uma mãe sente quando vê a sua filha sentada no banco dos réus, de um qualquer tribunal português, por ter recorrido, conscientemente, ao aborto. As mais desfavorecidas economicamente praticam-no, muitas vezes, sem condições mínimas de segurança, cujas consequências para a sua vida e para a sua saúde são incalculáveis. Outras fazem-no pela ausência de condições para assegurar uma maternidade-paternidade responsável, numa altura em que, cada vez mais, existe precariedade nos locais de trabalho.
«Quando a minha filha se viu confrontada com a gravidez ficou bastante perturbada porque essa situação punha em risco a sua carreira profissional. Não foi por falta de descuido. Era, e continua a ser, uma jovem atenta, que fazia o seu planeamento familiar. No entanto, como todos sabemos, nenhum método contraceptivo é 100 por cento seguro», afirmou, em declarações ao Avante!, a mãe de uma jovem mulher, acusada, e mais tarde absolvida, por prática de aborto. Pediu-nos para não ser identificada, mas contou-nos a sua história.
Depois surge o dilema de ter ou não condições de criar uma criança, visto ser uma trabalhadora independente e que anda sempre, em termos profissionais, de um lado para o outro. A mãe e a família foram os primeiros a saber. «Auscultou, reflectiu e, depois, decidiu. Porque se ela não quisesse decidir da maneira que decidiu não poderia ser eu a obrigá-la», clarificou.
Não foi um acto irreflectido. A mãe, mulher de grande coragem e dedicação, chegou mesmo a procurar um médico. Depois, com a ajuda de uma familiar, encontrou-se uma parteira, que alguém um dia lhe disse ser competente, tendo «tudo corrido bem».
Passado algum tempo, a familiar que as ajudou, mãe e filha, foi contactada, telefonicamente, pela Polícia Judiciária (PJ). Pensa-se que a parteira tinha o telefone sob escuta e que a partir daí chegaram às mulheres, entretanto, acusadas. «Partimos do pressuposto que era uma brincadeira. Nunca imaginei que isso pudesse vir a ser um assunto polémico. E como não foi a única nem a primeira nem a última mulher a fazer um aborto, nunca imaginei que fosse por isso. No entanto, a PJ confirmou-nos que não era nenhuma partida», relatou, angustiada, aquela mulher.
«Todo o meu apoio»
Seguiram-se vários anos de idas a tribunal que acarretaram «graves consequências psicológicas» à mãe e, naturalmente, à filha.
«Todo este processo deixou-lhe várias marcas profissionais, humanas e psicológicas, ao ponto de renunciar a sua própria existência. Ela não era criminosa mas estava a ser tratada como tal», denunciou, dando conta da «humilhação» e da «perseguição» a que foi exposta.
«E se eu ficar presa?», ouviu tantas vezes aquela mãe. «Ficar presa. Mas porquê? Crime de ser livre. Crime de decidir por si», respondeu-lhe a mãe, tentando ajudá-la a ultrapassar aquela situação.
«Eu apelei sempre à sua calma, à sua serenidade. Disse-lhe tantas vezes: “isto vai-se resolver”, “tem calma”, “tens todo o meu apoio”», confessou, acusando, por seu lado, a comunicação social de ter posto «a nu a sua vida, o seu nome».
Nem mesmo a solidariedade que se sentia na rua, à porta do tribunal, lhe dava esperanças que tudo aquilo iria terminar. «Eu ainda lhe cheguei a dizer: “repara, não estás sozinha, estás comigo, que sou a tua mãe, com a nossa família, com todas estas pessoas que contestam, apoiam e lutam para que todo este processo acabe de uma vez por todas”», revelou, acentuando «que é preciso lutar» para que o que está mal mude.
Sobre o próximo referendo, que tem como objectivo despenalizar, ou não, a interrupção voluntária da gravidez, fez um apelo a todos os eleitores.
«Este é um problema que diz respeito a toda a gente e não só às mulheres. É um caso de cidadania e de progresso. Não é por ter passado por toda esta situação que defendo o “Sim”. O que é importante é mudar a lei e não penalizar, até porque não há nenhuma mulher que faça um aborto de ânimo leve», acentuou, acusando os movimentos que estão pelo «Não» de «confundir a opinião pública. Porque o que está em causa é a discriminação, o sofrimento, a humilhação e a exposição da vida íntima da mulher».
Travar o aborto nos bairros sociais
Mulheres continuarão
a «meter a agulha»
No Bairro do Lagarteiro todos o tratam, com grande carinho, por «Doutor». Os amigos chamam-lhe Chalana, alcunha que ganhou em miúdo, mas o seu nome é José António Pinto. É assistente social e foi condenado, em 2001, a 42 dias de prisão, por ter sido sensível ao drama de mulheres que, por razões económicas e sociais, tiveram que fazer um aborto. Na Maia, uma tenda gigante, em plena praça pública, serviu de tribunal, para condenar 17 mulheres e uma enfermeira.
Naquele bairro, o segundo mais problemático do Porto, a vida vive-se de maneira diferente. Tem características e índices de desemprego assustadoras. «Somos campeões na retirada de miúdos para tribunal, em institucionalizar crianças, em toxicodependentes, em número de reclusos», contou, ao Avante!, José Pinto, alertando para o facto de existir, ali, um grande número «famílias desestruturadas, numa situação social de grande desfavorecimento» e onde o nascimento de mais um filho «poder vir a desequilibrar, por completo, o orçamento familiar e a própria vida das crianças».
Um dia, porque não tinham recursos económicos para ir a uma clínica privada ou a Espanha para interromper uma gravidez indesejada, foram falar com o assistente social do Bairro do Lagarteiro, o nosso entrevistado.
Depois, com o objectivo de as ajudar, o assistente social desenvolveu uma série de contactos junto da Maternidade Júlio Diniz e de vários hospitais, «para resolver “aquilo” da melhor forma».
«Tinha a plena consciência de que se não tivesse tido ali uma intervenção, se não tivesse surgido rigorosamente nada, elas iam fazer o aborto na vizinha do lado. Iam meter a “agulha”. Podiam morrer, a criança nascer com deficiência ou ficarem impedidas de engravidar novamente. Esse risco iam-no correr, porque já estava decidido que o iam fazer», frisou José Pinto.
Tanto na maternidade como nos hospitais disseram-lhe que não podiam fazer nada, mas que conheciam uma enfermeira muito boa, uma obstetra, que tinha uma clínica. Segundo nos contou, a «senhora» foi notável e, depois de ele lhe ter contado as histórias, sofridas, a parteira disse-lhe que não iria levar dinheiro algum para fazer os abortos.
Uma realidade dramática
«Um belo dia» surge um postal na Junta de Freguesia da Campanhã, local onde trabalha, para se dirigir à Polícia Judiciária (PJ). «Eu fiquei um bocado assustado. Levo muitos toxicodependentes a consultas e às tantas eles podiam pensar que eu estava a traficar ou a vender droga», confessou.
Logo no outro dia foi até à PJ. Em conversa com os inspectores, perguntaram-lhe quais eram as suas funções, nomeadamente na área da saúde. José Pinto respondeu de imediato: «Trabalho com toxicodependentes, seropositivos, entre outros».
«E se de repente chegar lá uma rapariga para interromper uma gravidez, o que é que você faz?», voltaram a interrogar. Foi aí que se fez luz na cabeça do assistente social. «Às vezes sou confrontado com essas situações. Estou a lembrar-me de uma delas, uma situação dramática. Peguei na rapariga e encaminhei-a para uma enfermeira», respondeu.
Esta revelação não espantou em nada os agentes da PJ que traziam consigo um dossier muito bem documentado, com fotos e imagens de vídeo, onde se via o nosso entrevistado no local.
No entanto, apesar da sinceridade, estava a ser acusado de angariação de mulheres: «Se o senhor ganha dinheiro com “isso”?». A grande dúvida estava no facto de numa agenda haver umas notas escritas à mão, feitas pela enfermeira, onde se lia que «os taxistas ganhavam 10 contos», «os técnicos de farmácia, sete contos» e «a Junta de Freguesia, zero».
«Como não acreditaram que eu não ganhava nada propuseram falar com as mulheres para saber a verdade. Eu achei essa situação horrível. Mais humilhações, expô-las, terem que contar tudo, mas eles queriam saber», relatou, sublinhando que, mais tarde, a resposta das mulheres foi extraordinária: «Ele nunca nos pediu dinheiro, foi sempre espectacular connosco, se nós lhe pedimos ajuda foi porque confiávamos nele. Por favor não o vão prejudicar».
A fase seguinte seria conhecer o advogado, o homem que o iria defender em tribunal. Ao princípio o seu «defensor» não foi muito optimista, até lhe chegou a dizer: «você está mesmo desgraçado!». Passado mais de um ano, num humilhante julgamento, principalmente para as mulheres, «apanhei 42 dias de prisão».
A única coisa que confortava os réus era saber que lá fora, na rua, à porta do tribunal, estavam pessoas, organizações, partidos, nomeadamente o PCP, que estavam do seu lado e defendiam a despenalização do aborto.
Continua-se a fazer abortos
Entretanto, e todos o sabemos, continua-se a fazer abortos clandestinos. «O aborto clandestino existe. Em bairros sociais, como o do Lagarteiro, tem uma dimensão assustadora», denunciou José Pinto, sublinhando, mais uma vez, que «se as pessoas não tiverem recursos vão continuar a meter a “agulha”».
Durante a conversa, o assistente social criticou ainda os movimentos que estão pelo «Não». «A seguir ao Vinícius de Morais, sou a pessoa mais apaixonada pela vida, mas, em abundância. Nós não defendemos o aborto, mas sim a educação sexual, o planeamento familiar e políticas sociais para apoiar a família e a maternidade. Isto é que vai permitir que os meninos não apareçam no rio, que continuem a ser violados, a aparecer nos caixotes do lixo, a ser empurrados para instituições, em famílias de acolhimento que os tratam mal», acusou.
Num apelo ao voto no «Sim» para o próximo dia 11 de Fevereiro, o assistente social lembrou, por fim, que se a despenalização for aprovada, «os eleitores estão a dar um contributo sério para que o aborto clandestino pare e que deixe de existir com a dimensão que tem».
Abortos clandestinos em Portugal
«Um passo para a morte»
Desmistificar e mudar atitudes face à saúde e, em particular, à gravidez e ao parto, ajuda a entender o desenvolvimento da gravidez e a importância de esta ser desejada, exige informação clara e cientificamente fundamentada. Foi com este objectivo que Glória Marreiros, em 1961, escreveu o livro «Maternidade para reorientação da futura mãe».
«Eu não podia falar no aborto e a maneira que encontrei para auxiliar as pessoas foi por uma grelha do período fértil da mulher», contou-nos, frisando que, desde essa altura, ficou «sempre ligada às mulheres e à maternidade».
Hoje continua a fazer esclarecimentos juntos dos jovens para a educação sexual. «Há muita informação mas há pouca formação nessa área. Apesar da pílula anticonceptiva ter surgido, em Portugal, antes dos anos 60, continua a haver gravidezes indesejadas», constatou, acentuando que se a interrupção da gravidez for feita em más condições, «é um passo para a morte ou para a esterilidade futura».
Era isso que acontecia antes da Revolução dos Cravos e continua, por falta de vontade política, a acontecer. Durante o regime fascista, o desconhecimento, os preconceitos, o preço, a inacessibilidade não permitiam o uso da pílula a todas as mulheres em idade reprodutiva. Por uma questão de mentalidade, também os homens não contribuíam para uma sexualidade mais segura.
«Porque os homens não usavam preservativo, não lhes apetecia ou tinham vergonha de os ir comprar, não havia métodos contraceptivos cem por cento seguros, como ainda hoje acontece. Haviam pessoas que colocavam uma esponja. Nas cidades as mulheres punham um género de borracha na vagina, mas tudo falhava», descreveu Glória Marreiros, enfermeira, na altura.
Situações indesejadas
No desespero e no segredo das suas casas, as mulheres procuravam livrar-se da situação indesejada. Quando procuravam auxílio fora de portas, os abortos realizavam-se, na sua maioria, nas piores condições pelas chamadas «curiosas», abortadeiras sem nenhuma preparação técnica nem os mais elementares conhecimentos de assepsia.
«A “agulha”, uma espécie de agulha de croché, mas com uma barbela, era introduzida para fazer uma raspagem, o que provocava hemorragias e rupturas no útero. Depois havia o “pé de salsa” que originava muitas mortes por tétano. As “beberagens”, chás com diferentes componentes, também eram muito utilizados, a par do “quinino”, que também era abortivo», relatou, lembrando que em alguns casos «conseguia-se matar o embrião, mas não o expulsavam. As mulheres, passado algum tempo, começavam a sentir o cheiro, a ter febre, e iam parar à maternidade».
Em Portugal, e apesar de existir legislação com mais de 20 anos sobre o assunto, continuamos muito longe de ver cumpridos esses direitos que, mais do que solucionar enfermidades, concorrem para o bem-estar físico, mental e social do ser humano.
«A despenalização do aborto não obriga ninguém a abortar. O que permite é que as pessoas que têm necessidade premente de abortar o façam em condições de segurança, como se faz um pouco por toda a Europa», afirmou Glória Marreiros, mais tarde licenciada em Filosofia, sublinhando que esta é uma questão de «consciência de cada um». «A igreja não tinha nada que se meter nesta campanha. Que olhe para a sua própria consciência. Cada um faz aquilo que entende. Se uma pessoa, por motivos religiosos não desejar abortar, seja qual for a sua condição, ninguém a vai obrigar», acentuou.
Cristãos a favor da vida com dignidade
«Hipocrisia que envergonha o País»
É grande a hipocrisia que assola o nosso País. Assistimos, infelizmente, cada vez mais e de forma acentuada, à reiteração de uma lógica de confronto por parte de sectores mais obscurantistas no debate suscitado pelo referendo sobre a despenalização do aborto.
Felizmente, porque esta é uma questão de consciência, existem movimentos, também cristãos, que estão dispostos a defender, com o seu voto, o «Sim», no próximo dia 11 de Fevereiro.
«Sou a favor da vida, mas da vida toda, vivida em dignidade e em plenitude. Sou acérrima defensora dos direitos humanos e sociais. Sou a favor de uma maternidade e paternidade responsáveis», anunciou Deolinda Machado, cristã pelo «Sim».
Em conversa com o Avante!, lembrou que, caso seja aprovada, a nova lei não obrigará ninguém a abortar e será sempre em consciência que a opção será tomada. «Não posso aceitar que, hoje, as mulheres sejam criminalizadas por opção que tomam em consciência, até porque o fazem em desigualdade de opções. Crime é criminalizá-las», salientou.
Deolinda Machado alertou ainda para a hipocrisia política «que envergonha o País». «O caminho é a prevenção, mas falta a real implementação da educação sexual nas escolas e em meio familiar, bem como o planeamento familiar, para que um melhor conhecimento evite a gravidez e o recurso ao aborto», sublinhou.
Chamou ainda à atenção do problema das mulheres trabalhadoras, nomeadamente quando são inquiridas sobre se estão grávidas ou pretenderão ser mães, quando são entrevistadas para acederem ao mercado de trabalho. Ou ainda, aquelas que estando grávidas, são despedidas.
«O aborto é sempre o último recurso numa situação precária, numa situação dramática. E por isso não posso aceitar que os movimentos pelo “Não”, em prol da facilidade de raciocínio, venham com argumentos que não colhem. Estas mulheres têm que ser acompanhadas ao longo da sua vida, assim como as crianças deverão crescer em harmonia, com amor e educação», continuou Deolinda Machado, manifestando-se contra as «campanhas terroristas» do «Não».
«Penso também que esta não é uma questão só de mulheres. É uma questão de homens e de mulheres, de trabalhadores e trabalhadoras, de empregadoras e empregadores. É, sobretudo, uma questão de sociedade», acrescentou.
Por fim, a cristã católica apelou ao voto no «Sim». «A abstenção não vai contar comigo, porque eu vou continuar a lutar, como sempre lutei, contra a exploração das pessoas, sejam mulheres, homens ou crianças», concluiu.
O Avante! foi, entretanto, falar com quatro pessoas que, com histórias diferentes, defendem uma lei que despenalize o aborto e acabe com a criminalização das mulheres que necessitem de recorrer a este meio, mas que não impõe a ninguém o recurso a esta prática.
Invasão da vida íntima da mulher
Acusada por querer ser livre
Quem, por alguma razão, tenciona votar «Não», no próximo dia 11 de Fevereiro, jamais poderá compreender a dor, a amargura e a revolta que uma mãe sente quando vê a sua filha sentada no banco dos réus, de um qualquer tribunal português, por ter recorrido, conscientemente, ao aborto. As mais desfavorecidas economicamente praticam-no, muitas vezes, sem condições mínimas de segurança, cujas consequências para a sua vida e para a sua saúde são incalculáveis. Outras fazem-no pela ausência de condições para assegurar uma maternidade-paternidade responsável, numa altura em que, cada vez mais, existe precariedade nos locais de trabalho.
«Quando a minha filha se viu confrontada com a gravidez ficou bastante perturbada porque essa situação punha em risco a sua carreira profissional. Não foi por falta de descuido. Era, e continua a ser, uma jovem atenta, que fazia o seu planeamento familiar. No entanto, como todos sabemos, nenhum método contraceptivo é 100 por cento seguro», afirmou, em declarações ao Avante!, a mãe de uma jovem mulher, acusada, e mais tarde absolvida, por prática de aborto. Pediu-nos para não ser identificada, mas contou-nos a sua história.
Depois surge o dilema de ter ou não condições de criar uma criança, visto ser uma trabalhadora independente e que anda sempre, em termos profissionais, de um lado para o outro. A mãe e a família foram os primeiros a saber. «Auscultou, reflectiu e, depois, decidiu. Porque se ela não quisesse decidir da maneira que decidiu não poderia ser eu a obrigá-la», clarificou.
Não foi um acto irreflectido. A mãe, mulher de grande coragem e dedicação, chegou mesmo a procurar um médico. Depois, com a ajuda de uma familiar, encontrou-se uma parteira, que alguém um dia lhe disse ser competente, tendo «tudo corrido bem».
Passado algum tempo, a familiar que as ajudou, mãe e filha, foi contactada, telefonicamente, pela Polícia Judiciária (PJ). Pensa-se que a parteira tinha o telefone sob escuta e que a partir daí chegaram às mulheres, entretanto, acusadas. «Partimos do pressuposto que era uma brincadeira. Nunca imaginei que isso pudesse vir a ser um assunto polémico. E como não foi a única nem a primeira nem a última mulher a fazer um aborto, nunca imaginei que fosse por isso. No entanto, a PJ confirmou-nos que não era nenhuma partida», relatou, angustiada, aquela mulher.
«Todo o meu apoio»
Seguiram-se vários anos de idas a tribunal que acarretaram «graves consequências psicológicas» à mãe e, naturalmente, à filha.
«Todo este processo deixou-lhe várias marcas profissionais, humanas e psicológicas, ao ponto de renunciar a sua própria existência. Ela não era criminosa mas estava a ser tratada como tal», denunciou, dando conta da «humilhação» e da «perseguição» a que foi exposta.
«E se eu ficar presa?», ouviu tantas vezes aquela mãe. «Ficar presa. Mas porquê? Crime de ser livre. Crime de decidir por si», respondeu-lhe a mãe, tentando ajudá-la a ultrapassar aquela situação.
«Eu apelei sempre à sua calma, à sua serenidade. Disse-lhe tantas vezes: “isto vai-se resolver”, “tem calma”, “tens todo o meu apoio”», confessou, acusando, por seu lado, a comunicação social de ter posto «a nu a sua vida, o seu nome».
Nem mesmo a solidariedade que se sentia na rua, à porta do tribunal, lhe dava esperanças que tudo aquilo iria terminar. «Eu ainda lhe cheguei a dizer: “repara, não estás sozinha, estás comigo, que sou a tua mãe, com a nossa família, com todas estas pessoas que contestam, apoiam e lutam para que todo este processo acabe de uma vez por todas”», revelou, acentuando «que é preciso lutar» para que o que está mal mude.
Sobre o próximo referendo, que tem como objectivo despenalizar, ou não, a interrupção voluntária da gravidez, fez um apelo a todos os eleitores.
«Este é um problema que diz respeito a toda a gente e não só às mulheres. É um caso de cidadania e de progresso. Não é por ter passado por toda esta situação que defendo o “Sim”. O que é importante é mudar a lei e não penalizar, até porque não há nenhuma mulher que faça um aborto de ânimo leve», acentuou, acusando os movimentos que estão pelo «Não» de «confundir a opinião pública. Porque o que está em causa é a discriminação, o sofrimento, a humilhação e a exposição da vida íntima da mulher».
Travar o aborto nos bairros sociais
Mulheres continuarão
a «meter a agulha»
No Bairro do Lagarteiro todos o tratam, com grande carinho, por «Doutor». Os amigos chamam-lhe Chalana, alcunha que ganhou em miúdo, mas o seu nome é José António Pinto. É assistente social e foi condenado, em 2001, a 42 dias de prisão, por ter sido sensível ao drama de mulheres que, por razões económicas e sociais, tiveram que fazer um aborto. Na Maia, uma tenda gigante, em plena praça pública, serviu de tribunal, para condenar 17 mulheres e uma enfermeira.
Naquele bairro, o segundo mais problemático do Porto, a vida vive-se de maneira diferente. Tem características e índices de desemprego assustadoras. «Somos campeões na retirada de miúdos para tribunal, em institucionalizar crianças, em toxicodependentes, em número de reclusos», contou, ao Avante!, José Pinto, alertando para o facto de existir, ali, um grande número «famílias desestruturadas, numa situação social de grande desfavorecimento» e onde o nascimento de mais um filho «poder vir a desequilibrar, por completo, o orçamento familiar e a própria vida das crianças».
Um dia, porque não tinham recursos económicos para ir a uma clínica privada ou a Espanha para interromper uma gravidez indesejada, foram falar com o assistente social do Bairro do Lagarteiro, o nosso entrevistado.
Depois, com o objectivo de as ajudar, o assistente social desenvolveu uma série de contactos junto da Maternidade Júlio Diniz e de vários hospitais, «para resolver “aquilo” da melhor forma».
«Tinha a plena consciência de que se não tivesse tido ali uma intervenção, se não tivesse surgido rigorosamente nada, elas iam fazer o aborto na vizinha do lado. Iam meter a “agulha”. Podiam morrer, a criança nascer com deficiência ou ficarem impedidas de engravidar novamente. Esse risco iam-no correr, porque já estava decidido que o iam fazer», frisou José Pinto.
Tanto na maternidade como nos hospitais disseram-lhe que não podiam fazer nada, mas que conheciam uma enfermeira muito boa, uma obstetra, que tinha uma clínica. Segundo nos contou, a «senhora» foi notável e, depois de ele lhe ter contado as histórias, sofridas, a parteira disse-lhe que não iria levar dinheiro algum para fazer os abortos.
Uma realidade dramática
«Um belo dia» surge um postal na Junta de Freguesia da Campanhã, local onde trabalha, para se dirigir à Polícia Judiciária (PJ). «Eu fiquei um bocado assustado. Levo muitos toxicodependentes a consultas e às tantas eles podiam pensar que eu estava a traficar ou a vender droga», confessou.
Logo no outro dia foi até à PJ. Em conversa com os inspectores, perguntaram-lhe quais eram as suas funções, nomeadamente na área da saúde. José Pinto respondeu de imediato: «Trabalho com toxicodependentes, seropositivos, entre outros».
«E se de repente chegar lá uma rapariga para interromper uma gravidez, o que é que você faz?», voltaram a interrogar. Foi aí que se fez luz na cabeça do assistente social. «Às vezes sou confrontado com essas situações. Estou a lembrar-me de uma delas, uma situação dramática. Peguei na rapariga e encaminhei-a para uma enfermeira», respondeu.
Esta revelação não espantou em nada os agentes da PJ que traziam consigo um dossier muito bem documentado, com fotos e imagens de vídeo, onde se via o nosso entrevistado no local.
No entanto, apesar da sinceridade, estava a ser acusado de angariação de mulheres: «Se o senhor ganha dinheiro com “isso”?». A grande dúvida estava no facto de numa agenda haver umas notas escritas à mão, feitas pela enfermeira, onde se lia que «os taxistas ganhavam 10 contos», «os técnicos de farmácia, sete contos» e «a Junta de Freguesia, zero».
«Como não acreditaram que eu não ganhava nada propuseram falar com as mulheres para saber a verdade. Eu achei essa situação horrível. Mais humilhações, expô-las, terem que contar tudo, mas eles queriam saber», relatou, sublinhando que, mais tarde, a resposta das mulheres foi extraordinária: «Ele nunca nos pediu dinheiro, foi sempre espectacular connosco, se nós lhe pedimos ajuda foi porque confiávamos nele. Por favor não o vão prejudicar».
A fase seguinte seria conhecer o advogado, o homem que o iria defender em tribunal. Ao princípio o seu «defensor» não foi muito optimista, até lhe chegou a dizer: «você está mesmo desgraçado!». Passado mais de um ano, num humilhante julgamento, principalmente para as mulheres, «apanhei 42 dias de prisão».
A única coisa que confortava os réus era saber que lá fora, na rua, à porta do tribunal, estavam pessoas, organizações, partidos, nomeadamente o PCP, que estavam do seu lado e defendiam a despenalização do aborto.
Continua-se a fazer abortos
Entretanto, e todos o sabemos, continua-se a fazer abortos clandestinos. «O aborto clandestino existe. Em bairros sociais, como o do Lagarteiro, tem uma dimensão assustadora», denunciou José Pinto, sublinhando, mais uma vez, que «se as pessoas não tiverem recursos vão continuar a meter a “agulha”».
Durante a conversa, o assistente social criticou ainda os movimentos que estão pelo «Não». «A seguir ao Vinícius de Morais, sou a pessoa mais apaixonada pela vida, mas, em abundância. Nós não defendemos o aborto, mas sim a educação sexual, o planeamento familiar e políticas sociais para apoiar a família e a maternidade. Isto é que vai permitir que os meninos não apareçam no rio, que continuem a ser violados, a aparecer nos caixotes do lixo, a ser empurrados para instituições, em famílias de acolhimento que os tratam mal», acusou.
Num apelo ao voto no «Sim» para o próximo dia 11 de Fevereiro, o assistente social lembrou, por fim, que se a despenalização for aprovada, «os eleitores estão a dar um contributo sério para que o aborto clandestino pare e que deixe de existir com a dimensão que tem».
Abortos clandestinos em Portugal
«Um passo para a morte»
Desmistificar e mudar atitudes face à saúde e, em particular, à gravidez e ao parto, ajuda a entender o desenvolvimento da gravidez e a importância de esta ser desejada, exige informação clara e cientificamente fundamentada. Foi com este objectivo que Glória Marreiros, em 1961, escreveu o livro «Maternidade para reorientação da futura mãe».
«Eu não podia falar no aborto e a maneira que encontrei para auxiliar as pessoas foi por uma grelha do período fértil da mulher», contou-nos, frisando que, desde essa altura, ficou «sempre ligada às mulheres e à maternidade».
Hoje continua a fazer esclarecimentos juntos dos jovens para a educação sexual. «Há muita informação mas há pouca formação nessa área. Apesar da pílula anticonceptiva ter surgido, em Portugal, antes dos anos 60, continua a haver gravidezes indesejadas», constatou, acentuando que se a interrupção da gravidez for feita em más condições, «é um passo para a morte ou para a esterilidade futura».
Era isso que acontecia antes da Revolução dos Cravos e continua, por falta de vontade política, a acontecer. Durante o regime fascista, o desconhecimento, os preconceitos, o preço, a inacessibilidade não permitiam o uso da pílula a todas as mulheres em idade reprodutiva. Por uma questão de mentalidade, também os homens não contribuíam para uma sexualidade mais segura.
«Porque os homens não usavam preservativo, não lhes apetecia ou tinham vergonha de os ir comprar, não havia métodos contraceptivos cem por cento seguros, como ainda hoje acontece. Haviam pessoas que colocavam uma esponja. Nas cidades as mulheres punham um género de borracha na vagina, mas tudo falhava», descreveu Glória Marreiros, enfermeira, na altura.
Situações indesejadas
No desespero e no segredo das suas casas, as mulheres procuravam livrar-se da situação indesejada. Quando procuravam auxílio fora de portas, os abortos realizavam-se, na sua maioria, nas piores condições pelas chamadas «curiosas», abortadeiras sem nenhuma preparação técnica nem os mais elementares conhecimentos de assepsia.
«A “agulha”, uma espécie de agulha de croché, mas com uma barbela, era introduzida para fazer uma raspagem, o que provocava hemorragias e rupturas no útero. Depois havia o “pé de salsa” que originava muitas mortes por tétano. As “beberagens”, chás com diferentes componentes, também eram muito utilizados, a par do “quinino”, que também era abortivo», relatou, lembrando que em alguns casos «conseguia-se matar o embrião, mas não o expulsavam. As mulheres, passado algum tempo, começavam a sentir o cheiro, a ter febre, e iam parar à maternidade».
Em Portugal, e apesar de existir legislação com mais de 20 anos sobre o assunto, continuamos muito longe de ver cumpridos esses direitos que, mais do que solucionar enfermidades, concorrem para o bem-estar físico, mental e social do ser humano.
«A despenalização do aborto não obriga ninguém a abortar. O que permite é que as pessoas que têm necessidade premente de abortar o façam em condições de segurança, como se faz um pouco por toda a Europa», afirmou Glória Marreiros, mais tarde licenciada em Filosofia, sublinhando que esta é uma questão de «consciência de cada um». «A igreja não tinha nada que se meter nesta campanha. Que olhe para a sua própria consciência. Cada um faz aquilo que entende. Se uma pessoa, por motivos religiosos não desejar abortar, seja qual for a sua condição, ninguém a vai obrigar», acentuou.
Cristãos a favor da vida com dignidade
«Hipocrisia que envergonha o País»
É grande a hipocrisia que assola o nosso País. Assistimos, infelizmente, cada vez mais e de forma acentuada, à reiteração de uma lógica de confronto por parte de sectores mais obscurantistas no debate suscitado pelo referendo sobre a despenalização do aborto.
Felizmente, porque esta é uma questão de consciência, existem movimentos, também cristãos, que estão dispostos a defender, com o seu voto, o «Sim», no próximo dia 11 de Fevereiro.
«Sou a favor da vida, mas da vida toda, vivida em dignidade e em plenitude. Sou acérrima defensora dos direitos humanos e sociais. Sou a favor de uma maternidade e paternidade responsáveis», anunciou Deolinda Machado, cristã pelo «Sim».
Em conversa com o Avante!, lembrou que, caso seja aprovada, a nova lei não obrigará ninguém a abortar e será sempre em consciência que a opção será tomada. «Não posso aceitar que, hoje, as mulheres sejam criminalizadas por opção que tomam em consciência, até porque o fazem em desigualdade de opções. Crime é criminalizá-las», salientou.
Deolinda Machado alertou ainda para a hipocrisia política «que envergonha o País». «O caminho é a prevenção, mas falta a real implementação da educação sexual nas escolas e em meio familiar, bem como o planeamento familiar, para que um melhor conhecimento evite a gravidez e o recurso ao aborto», sublinhou.
Chamou ainda à atenção do problema das mulheres trabalhadoras, nomeadamente quando são inquiridas sobre se estão grávidas ou pretenderão ser mães, quando são entrevistadas para acederem ao mercado de trabalho. Ou ainda, aquelas que estando grávidas, são despedidas.
«O aborto é sempre o último recurso numa situação precária, numa situação dramática. E por isso não posso aceitar que os movimentos pelo “Não”, em prol da facilidade de raciocínio, venham com argumentos que não colhem. Estas mulheres têm que ser acompanhadas ao longo da sua vida, assim como as crianças deverão crescer em harmonia, com amor e educação», continuou Deolinda Machado, manifestando-se contra as «campanhas terroristas» do «Não».
«Penso também que esta não é uma questão só de mulheres. É uma questão de homens e de mulheres, de trabalhadores e trabalhadoras, de empregadoras e empregadores. É, sobretudo, uma questão de sociedade», acrescentou.
Por fim, a cristã católica apelou ao voto no «Sim». «A abstenção não vai contar comigo, porque eu vou continuar a lutar, como sempre lutei, contra a exploração das pessoas, sejam mulheres, homens ou crianças», concluiu.