O espectáculo
O mais relevante momento de TV na passada semana, e talvez mesmo em todo o ano de 2006, foram as imagens do enforcamento de Saddam Hussein. Na televisão portuguesa e na generalidade das restantes não foi, como se sabe, uma reportagem integral, total, da execução, mas há notícia de que na Net circula ou circulou uma versão mais completa, que incluirá o instante em que o chão se abre debaixo dos pés do antigo ditador e a queda vai quebrar-lhe o pescoço. Estou convencido de que o George W. Bush teve acesso a essas imagens, o que lhe terá valido, enfim, uma inteira tranquilidade: daquela boca já não poderão sair denúncias que, a ocorrerem, sempre lhe seriam incómodas e não apenas a si. Quanto à quase totalidade do mundo que não é USA, as reacções ao enforcamento foram quase sempre negativas, quer o tenham sido por hipocrisia quer por sincera recusa da pena de morte. Quanto a Bush, produziu o comentário que dele seria de esperar em perfeita coerência com a impostura, em que já ninguém acredita, segundo a qual a invasão do Iraque foi uma bênção para o país e a implementação de uma democracia sob tutela e vigilância dos Estados Unidos e dos seus soldados é possível e está para breve. Um pouco em consonância com este disparate, a televisão transmitiu comentários de «analistas» que acharam poucos os mortos provocados pelos primeiros atentados imputáveis à intenção sunita de vingar Saddam. Contudo, é de crer que basta esperar para que o rol de vítimas da retaliação suba significativamente: a vingança raramente tem pressa, e é evidente que Saddam Hussein, enforcado e exibido nos seus últimos momentos, já se tornou para os seus milhares de adeptos um estandarte de luta. Até talvez Bush, que não é dado a entender muitas coisas, perceba isto, mas é claro que, também perante este caso, tem de adoptar uma atitude de fingimento. Aliás, o fingimento completado com a asneira impune tem sido a sua dominante linha de comportamento, e apesar da recente derrota eleitoral dos republicanos tudo indica que o mundo ainda vai ter se suportá-lo durante cerca de três anos. Com as garras aparadas, é certo; mas ninguém sabe até que ponto ou com que eficácia, até porque os grandes interesses norte-americanos são comuns a republicanos e democratas. O que não quer dizer que seja indiferente que esteja na Casa Branca o senhor George W. Bush ou outro sujeito pelo menos mais eficazmente alfabetizado.
Uma conversa que não houve
O que não vi que a televisão nos tenha dito, o mesmo aliás acontecendo com os outros órgãos de comunicação social a que tive acesso, foi que Saddam Hussein foi condenado à morte e executado praticamente diante dos nossos olhos, não por todos os seus crimes mas apenas por um deles, e que esse crime, a morte de umas dezenas de curdos, foi praticado quando Saddam era aliado dos Estados Unidos e deles recebia apoio militar e diplomático. Assim, não é abusivo dizer que o poder norte-americano foi conivente com esse e outros crimes do ditador, que só passou a hostilizar por palavras e por actos quando os famigerados «interesses dos Estados Unidos» colocaram com prioridade e urgência o domínio político-militar da região que é a maior produtora de petróleo do mundo. Já agora registe-se que o massacre por Saddam de milhares de militantes comunistas foi um dos muitos crimes que parecem ter passado despercebidos aos norte-americanos, se é que não foi recebido com discreto agrado. Não admira que tenha sido assim, já se vê, mas é sempre bom lembrar estas coisas. Por tudo isto, e note-se que aqui apenas fica aflorado um outro facto quando haveria sólida razão para arrolar um bom magote deles, fica a inevitável sensação de que o julgamento de Saddam não foi apenas uma farsa jurídica com o sabor de ter sido telecomandada de Washington (que a apresentou como uma vitória da democracia made in USA num tempo em que os States acumulam no Iraque derrotas sobre derrotas): fica também a evidência de que faltou alguém naquele banco de réus. Seria excessivo dizer que ao lado da forca de Saddam Hussein se justificaria uma outra forca: em verdade, se por aí se fosse, mesmo na sequência de um raciocínio puramente formal e académico, dar-se-ia pela falta de muitas outras forcas. Mas é claro que as conversas devem ser levadas até ao fim, e a execução de Saddam, tornada pela TV espectáculo para multidões, em rigor deveria ser apenas o princípio de uma conversa longa e muito esclarecedora. Que nem a TV nem os outros media quis prosseguir.
Uma conversa que não houve
O que não vi que a televisão nos tenha dito, o mesmo aliás acontecendo com os outros órgãos de comunicação social a que tive acesso, foi que Saddam Hussein foi condenado à morte e executado praticamente diante dos nossos olhos, não por todos os seus crimes mas apenas por um deles, e que esse crime, a morte de umas dezenas de curdos, foi praticado quando Saddam era aliado dos Estados Unidos e deles recebia apoio militar e diplomático. Assim, não é abusivo dizer que o poder norte-americano foi conivente com esse e outros crimes do ditador, que só passou a hostilizar por palavras e por actos quando os famigerados «interesses dos Estados Unidos» colocaram com prioridade e urgência o domínio político-militar da região que é a maior produtora de petróleo do mundo. Já agora registe-se que o massacre por Saddam de milhares de militantes comunistas foi um dos muitos crimes que parecem ter passado despercebidos aos norte-americanos, se é que não foi recebido com discreto agrado. Não admira que tenha sido assim, já se vê, mas é sempre bom lembrar estas coisas. Por tudo isto, e note-se que aqui apenas fica aflorado um outro facto quando haveria sólida razão para arrolar um bom magote deles, fica a inevitável sensação de que o julgamento de Saddam não foi apenas uma farsa jurídica com o sabor de ter sido telecomandada de Washington (que a apresentou como uma vitória da democracia made in USA num tempo em que os States acumulam no Iraque derrotas sobre derrotas): fica também a evidência de que faltou alguém naquele banco de réus. Seria excessivo dizer que ao lado da forca de Saddam Hussein se justificaria uma outra forca: em verdade, se por aí se fosse, mesmo na sequência de um raciocínio puramente formal e académico, dar-se-ia pela falta de muitas outras forcas. Mas é claro que as conversas devem ser levadas até ao fim, e a execução de Saddam, tornada pela TV espectáculo para multidões, em rigor deveria ser apenas o princípio de uma conversa longa e muito esclarecedora. Que nem a TV nem os outros media quis prosseguir.