A mulher, a família e a IVG

Jorge Messias
Como é sabido, o novo referendo sobre a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez foi marcado para 11 de Fevereiro. Não é que a consulta popular fosse necessária. Se o PS quisesse, a maioria absoluta de que dispõe na Assembleia da República permitir-lhe-ia passar de imediato à aprovação de novas disposições legislativas. Mas o PS não quis. Preferiu marcar passo e embrulhar as intenções e os actos. Baralhar e dar para voltar a baralhar. Como aconteceu quando se realizou o primeiro referendo.
O grupo parlamentar socialista diz-se agora dividido entre o sim e o não. Esperemos para ver. Quanto ao movimento de Manuel Alegre, afinal nem ele sabe qual será o seu sentido de voto ou se o seu voto fará sentido.
Assim, a igreja católica continua a ser a grande mentora dos que defendem a tese do crime e castigo. E é já evidente que irá introduzir algumas mudanças na estratégia que adoptou em 1998. Foi então pouco subtil e expôs desnecessariamente a hierarquia religiosa. Agora, os dados recolhidos nas declarações públicas de responsáveis católicos apontam no sentido de um certo alheamento aparente do alto clero e na condução pública da campanha por leigos e organizações da chamada sociedade civil.

Os terrenos desde sempre cobiçados

É evidente que este afastamento dos bispos será relativo. Um aqui, outro além, eles lá aparecerão a defender o dogma e a condenar a despenalização. Bem sabem que uma chamada às armas do povo católico é essencial como factor de mobilização. Embora os perigos do referendo sejam relativos.
O governo, as instituições, os partidos do poder, fazem a parte que lhes compete. Desmontam o aparelho do Estado, criam grandes espaços vazios e preparam a entrega de áreas apetecidas à intervenção ilimitada da igreja católica. Outro não é o significado desta pastelada governativa de socialismo confuso, financeiro, capitalista e neoliberal. Fecham-se, aos milhares, escolas primárias, urgências hospitalares e serviços de primeira necessidade. Descapitaliza-se a Segurança Social. O governo promove activamente o agravamento da qualidade de vida das populações.
Tratar-se-á do caos total? Nem tanto. A igreja católica ibérica prepara-se para ocupar os vazios que competiria ao Estado preencher, com creches, maternidades, hospitais e escolas suas e centros sociais, instituições de rectaguarda ou serviços caritativos seus. Trata-se de um investimento gigantesco, só possível se funcionar a aliança entre a igreja, o poder político e a nata do capital financeiro. Isto envolve a tal subtil alteração estratégica das posições do não, atrás já referidas.
Poucas dúvidas existem quanto à vitória formal no próximo referendo daqueles que apoiam o sim. Basta constatar-se como os espanhóis da Clínica dos Arcos continuam a construir a todo o vapor o seu grande complexo hospitalar de Lisboa, sem se preocuparem com os resultados do referendo. Isto, apesar dos custos da construção serem de monta!
Falta saber se o governo de Sócrates respeitará a vontade popular. O que é improvável. Não é certamente por acaso que os bispos começam a aludir à eventual desobediência civil, à recusa do cumprimento da lei por razões de consciência ou à possível fuga dos médicos que trabalham nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde.
Quanto a Sócrates, tem tudo nas suas mãos para «entupir» o processo no caso da vitória do sim. Aos socialistas bastará, para tanto, não regulamentar uma nova lei que despenalize a prática da IVG ou conceber de tal modo o novo texto legal que as suas disposições se invalidem umas às outras. Os bons especialistas em tricas e intrigas estão no governo ou anicham-se nas suas bases de apoio.
É evidente que nada disto diminui a importância que um sim popular largamente participado terá no reforço da consciência cívica dos cidadãos.
É fundamental que assim aconteça em defesa dos direitos da mulher, da família e da Constituição da República democrática, votada em liberdade. É preciso que o povo português vença este combate e entenda essa sua vitória como clara demonstração de força do poder popular. De forma a recusar no futuro transigir com aqueles que apenas procuram corromper e enganar o País.
A mais que provável vitória do sim à despenalização da IVG, tem de ser considerada nos quadros, muito mais amplos, da luta de classes. Não é a questão simples do referendo que preocupa a hierarquia da igreja, a cadeia do poder político ou a casta dos exploradores. Para estes, o grande desconforto virá com a firme manifestação da força popular – no voto, no debate, nas autarquias, nas empresas ou nas ruas – e na democratização efectiva da sociedade que formamos. É a luta contra a tirania e pela democracia social.


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