Transformação actual do desporto

O futebol e o dinheiro

A. Mello de Carvalho
Os escândalos de corrupção de todo o tipo, mais ou menos activa, relacionados com o futebol rebentam por todo o lado no nosso País aliás, acompanhando o que se está a verificar em vários países europeus. Para quem anda bem metido nestas coisas do desporto mais ou menos profissional que existe entre nós, sabe que ainda se vai somente na ponta do icebergue.
O problema refere-se, normalmente, ao espectáculo desportivo profissional, mas é no futebol e na construção dos grandes e médios equipamentos desportivos que assenta a tão propalada «promiscuidade» que integrou num mesmo complexo de relações, de que retiram vantagens de vário tipo, «certos» políticos (poder central e local), «certos» empreiteiros, «certos» dirigentes associativos, «certos» árbitros. A falta de clareza que caracteriza uma grande parte do mundo do futebol, impede uma compreensão clara do que se passa por parte da generalidade da população. Há quem custa a acreditar que, por exemplo, em ex-presidente do Benfica seja efectivamente culpado de um certo número de trapalhadas apesar de estar já condenado e comprovadamente culpado. Pois, mesmo assim, continuam a realizar-se manifestações de apoio à sua pessoa como presidente do clube. E este é, apenas, um exemplo entre muitos.
Na realidade, podemos dizer que existem três formas diferentes de encarar o futebol que estruturam três realidades diferentes, cada uma com as suas características próprias:
- aquela que se preocupa com os golos – interesse no jogo;
- aquela que se preocupa com os dinheiros movimentados – interesse económico;
- aquela que se preocupa com o espectáculo da pancadaria dentro e fora do campo – violência social.
Estas três realidades coabitam normalmente nos grandes desafios de futebol, mas não se estruturam com suficiente clareza. Por isso, a dificuldade em definir o significado preciso de um espectáculo desportivo é suficientemente acentuada para «baralhar» a compreensão daquilo que se passa em campo e fora dele. Seja como for o dinheiro está sempre presente, respondendo a interesses diferentes complexamente entrecruzados:
- o desporto em que a finalidade é a reprodução do dinheiro (fazer mais dinheiro a partir do dinheiro que se investe no futebol);
- o desporto em que o dinheiro constitui um meio inevitável para que o futebol sirva as necessidades dos indivíduos que o praticam – ocupação sadia do tempo livre, melhoria da saúde, diversão, progresso das capacidades, etc.
No presente, no nosso país, vive-se uma contradição profunda em relação a esta questão, contradição que tem tendência a agravar-se:
- de um lado, a «política» dos políticos tende a dar prioridade à rendibilidade económica e política, de acordo com critérios do futebol espectáculo e do desporto mercadoria, de onde resultam todas as consequências de uma comercialização que nada se preocupa com o significado educativo e cultural das práticas, e cuja desregulação só agora, vagamente, começou a preocupar os poderes públicos, tal a gravidade social que a situação assumiu (especialmente a fuga ao fisco);
- de outro lado, a progressiva tomada de consciência, quer de muitos cidadãos, quer de dirigentes associativos, de que é indispensável resistir aquela evolução e procurar estruturar em bases sólidas e bem transparentes, uma outra forma de organização (questão nebulosa no meio do «nevoeiro» de contradições vividas pela nossa sociedade).
Se tudo isto é confuso, no entanto, uma coisa parece ser clara: é a de que, como actividade humana, o futebol sob as suas diferentes formas, não pode ser exclusivamente limitado a um simples produto comercial. Ao pensarmos na generalização das suas práticas desportivas, à população, só as actividades não mercantis, ou seja, aquelas que precisam do dinheiro para se desenvolverem mas não permitem que o dinheiro investido reproduza mais dinheiro, constituem a base essencial do desenvolvimento desportivo.
Convém não ter ilusões: a situação não é favorável a esta última perspectiva e vive-se um momento decisivo em que as decisões tomadas podem agravar o desequilíbrio entre o domínio do mercado sobre o desporto em detrimento do reconhecimento do sector das actividades não mercantis.
Para evitar esta situação e criar uma outra em que as diferentes formas de organização pudessem ocupar o seu lugar de forma coerente e clara era indispensável:
- garantir a existência de uma forte relação entre o desporto e a ética;
- criar as bases de um novo reconhecimento do trabalho dos clubes populares e dos seus dirigentes voluntários;
- tomar medidas eficazes de protecção dos consumidores do espectáculo desportivo de forma a regular, de forma justa, o domínio do desporto pelo capital;
- pôr a funcionar um observatório nacional da evolução do desporto capaz de vigiar permanentemente os diferentes aspectos do desporto comercial e não comercial.
Mas como esperar que tudo isto aconteça num País em que a desregulação, a falta de intervenção ética, a ausência de uma eficaz forma de controlo, etc. se têm acentuado ano após ano? Só uma nova visão da parte do dirigismo desportivo poderia lançar formas de pressão capazes de enfrentar a crise.


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