Mentiras, loucuras, mortes - I
Toda a arte traz o cunhoA obra de Bartolomeu dos Santos é de grande singularidade no quadro da arte contemporânea. Percorre-a uma inquietação sem limites que o faz mergulhar na aventura do mundo para o interrogar e questionar em todos os azimutes. Propõe questões que problematizam as relações entre o mundo colectivo e o mundo individual, os encontros e desencontros do consciente e do subconsciente fluindo sem desfalecimentos na areia da ampulheta do tempo, «O tempo presente e o tempo passado / são, talvez, presente no tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado» (T.S.Elliot referido por Bartolomeu dos Santos). Do tempo exterior padronizado, medido normativamente e do tempo interior que se mede idiossincraticamente com a razão e com a paixão. Essa tessitura do tempo é sinalizada por Bartolomeu com obras de arte onde cintilam ideias, mistérios, memórias, homenagens, viagens, indignações, acusações. São uma volta ao mundo em todos os dias.
da sua época histórica,
mas a grande arte é aquela em que esse cunho
está mais profundamente marcado
Henri Matisse, Escritos sobre Arte
« (…) Panurgo, sem dizer nada,
lança ao mar alto o seu carneiro que guincha e bale.
Todos os outros carneiros, guinchando e balindo no mesmo tom,
começaram depois a saltar e a lançar-se ao mar um após outro.
Depois de o primeiro ter saltado, todos os outros o seguiram.
Não era possível impedi-los, pois como sabeis,
é da natureza dos carneiros seguirem sempre o primeiro,
para onde quer que este vá.
Assim diz Aristóteles, liv. IX, de História Animal,
chamando-lhe o mais insensato e imbecil animal do mundo.»
Rabelais, O Quarto Livro dos Feitos e Ditos Heróicos do Bom Pantagruel
O sono da razão engendra monstros
Goya
Não existem fronteiras entre Gutte Nacht, a pretexto da Viagem de Inverno, uma homenagem vibrante a Schubert, e Um Amante e Zeloso da Pátria, ave de rapina ameaçando Portugal de Abril, ou entre as diversas gravuras inspiradas pela Ode Marítima e a extraordinária Homenagem a Cesário Verde, onde as muitas referências literárias e visuais iluminam o retrato esbatido do poeta, e a Barca dos Loucos, O Guerreiro Lusitano ou as sequências de batalhas presentes nesta exposição e que, sendo uma denúncia mais imediata e evidente do estado de guerra contínua de baixa intensidade com que o império agonizante e sem fim previsto procura assegurar o futuro, são sobretudo denúncias da imoralidade da mentira não só por violar a verdade mas, sobretudo, por se ter transformado na insolência arrogante de nos tomar por insensatos e imbecis.
E não existem fronteiras porque para Bartolomeu as obras de arte são na sua essência cosmopolitas, defendem a liberdade de espírito, o poder criador do indivíduo frente à tirania do gosto massificado, são parceiras das inovações das ciências e das técnicas, estão do lado dos valores democráticos e revolucionários. Obras de arte que, hoje como antigamente, devem ser um testemunho, não fugaz nem pobre, da vida em toda a sua dimensão.
Em tempo de vacuidades e vulgaridades, a obra de Bartolomeu, e está muito bem acompanhado em todo o mundo, não participa da decadência artística em que se tropeça por todo o lado e em todos os lados, sustentada por um aparelho conceptual de requentados clichés apresentados como novidade, maquilhagem espessa que tapa e disfarça a pele enrugada de conceitos velhos e relhos, com a febrilidade sonambúlica da curiosidade de procurar com forçada avidez o novo para saltar para outro novo, sem se demorar em lado algum, como já havia sido tão bem descrito por Santo Agostinho e que Gadamer precisou «(…)uma curiosidade que provoca o tédio e o esgotamento, porque no fundo, o seu objecto não diz respeito a ninguém. Não há qualquer sentido para o espectador. Não existe nada nesse objecto que convide o espectador a voltar a ele realmente, nada em que possa concentrar-se. A qualidade formal da novidade é, com efeito, a alteridade abstracta». Experiências artísticas que se impõem como juiz de si próprias, autolegitimando-se, doxa que se inscreve no quadro actual da ideologia dominante e que são o kitsh do aparato ideológico totalitário do pensamento único.
( a propósito de)
SINAIS DOS TEMPOS
Bartolomeu Cid dos Santos
Pintura/Gravura/Instalação
Galeria Municipal Artur Bual / Amadora