Sinais dos tempos

Mentiras, loucuras, mortes - I

Manuel Augusto Araújo
Toda a arte traz o cunho
da sua época histórica,
mas a grande arte é aquela em que esse cunho
está mais profundamente marcado
Henri Matisse, Escritos sobre Arte

« (…) Panurgo, sem dizer nada,
lança ao mar alto o seu carneiro que guincha e bale.
Todos os outros carneiros, guinchando e balindo no mesmo tom,
começaram depois a saltar e a lançar-se ao mar um após outro.
Depois de o primeiro ter saltado, todos os outros o seguiram.
Não era possível impedi-los, pois como sabeis,
é da natureza dos carneiros seguirem sempre o primeiro,
para onde quer que este vá.
Assim diz Aristóteles, liv. IX, de História Animal,
chamando-lhe o mais insensato e imbecil animal do mundo.»
Rabelais, O Quarto Livro dos Feitos e Ditos Heróicos do Bom Pantagruel

O sono da razão engendra monstros
Goya
A obra de Bartolomeu dos Santos é de grande singularidade no quadro da arte contemporânea. Percorre-a uma inquietação sem limites que o faz mergulhar na aventura do mundo para o interrogar e questionar em todos os azimutes. Propõe questões que problematizam as relações entre o mundo colectivo e o mundo individual, os encontros e desencontros do consciente e do subconsciente fluindo sem desfalecimentos na areia da ampulheta do tempo, «O tempo presente e o tempo passado / são, talvez, presente no tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado» (T.S.Elliot referido por Bartolomeu dos Santos). Do tempo exterior padronizado, medido normativamente e do tempo interior que se mede idiossincraticamente com a razão e com a paixão. Essa tessitura do tempo é sinalizada por Bartolomeu com obras de arte onde cintilam ideias, mistérios, memórias, homenagens, viagens, indignações, acusações. São uma volta ao mundo em todos os dias.

Não existem fronteiras entre Gutte Nacht, a pretexto da Viagem de Inverno, uma homenagem vibrante a Schubert, e Um Amante e Zeloso da Pátria, ave de rapina ameaçando Portugal de Abril, ou entre as diversas gravuras inspiradas pela Ode Marítima e a extraordinária Homenagem a Cesário Verde, onde as muitas referências literárias e visuais iluminam o retrato esbatido do poeta, e a Barca dos Loucos, O Guerreiro Lusitano ou as sequências de batalhas presentes nesta exposição e que, sendo uma denúncia mais imediata e evidente do estado de guerra contínua de baixa intensidade com que o império agonizante e sem fim previsto procura assegurar o futuro, são sobretudo denúncias da imoralidade da mentira não só por violar a verdade mas, sobretudo, por se ter transformado na insolência arrogante de nos tomar por insensatos e imbecis.

E não existem fronteiras porque para Bartolomeu as obras de arte são na sua essência cosmopolitas, defendem a liberdade de espírito, o poder criador do indivíduo frente à tirania do gosto massificado, são parceiras das inovações das ciências e das técnicas, estão do lado dos valores democráticos e revolucionários. Obras de arte que, hoje como antigamente, devem ser um testemunho, não fugaz nem pobre, da vida em toda a sua dimensão.

Em tempo de vacuidades e vulgaridades, a obra de Bartolomeu, e está muito bem acompanhado em todo o mundo, não participa da decadência artística em que se tropeça por todo o lado e em todos os lados, sustentada por um aparelho conceptual de requentados clichés apresentados como novidade, maquilhagem espessa que tapa e disfarça a pele enrugada de conceitos velhos e relhos, com a febrilidade sonambúlica da curiosidade de procurar com forçada avidez o novo para saltar para outro novo, sem se demorar em lado algum, como já havia sido tão bem descrito por Santo Agostinho e que Gadamer precisou «(…)uma curiosidade que provoca o tédio e o esgotamento, porque no fundo, o seu objecto não diz respeito a ninguém. Não há qualquer sentido para o espectador. Não existe nada nesse objecto que convide o espectador a voltar a ele realmente, nada em que possa concentrar-se. A qualidade formal da novidade é, com efeito, a alteridade abstracta». Experiências artísticas que se impõem como juiz de si próprias, autolegitimando-se, doxa que se inscreve no quadro actual da ideologia dominante e que são o kitsh do aparato ideológico totalitário do pensamento único.
( a propósito de)
SINAIS DOS TEMPOS
Bartolomeu Cid dos Santos

Pintura/Gravura/Instalação
Galeria Municipal Artur Bual / Amadora



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