«A rua»

Correia da Fonseca
Em dias recentes, ou pelo menos que todos eles recentes me parecem, ouvi na televisão por três ou quatro vezes distintos cavalheiros a advertirem-nos a nós, modestos telespectadores sem qualificações nem sabedorias especiais, que certos assuntos que contudo muito nos interessam não podem ser abordados ou discutidos ou esclarecidos «na rua». Nenhum deles acrescentou, que me lembre, qualquer informação adicional que permitisse saber as razões determinantes de tal impossibilidade, tendo eu ficado persuadido de que um dos motivos possíveis pode muito bem ser o ruído do trânsito, que está cada vez mais fragoroso, mais impeditivo de conversas. Provavelmente é também por isso que muito se ouve dizer que no nosso País há escassez de diálogo mas, por outro lado, se os lugares propícios para dialogar são os gabinetes remansosos e alcatifados, também é certo que em tais gabinetes não é admitido um qualquer. Este reservado direito de admissão logo limita o acesso ao desejado diálogo, e nem é preciso subir muito na escala social para encontrarmos exemplos concretos desta dificuldade.
por exemplo, pensemos numa empregada que num emprego de estabilidade nula ganhe um salário situado uns palmos abaixo do salário mínimo nacional e por isso tem vontade de falar com o patrão, isto é, com o senhor administrador que todos os dias chega ao emprego por volta das dez e picos da manhã, decerto porque o seu Porshe encontrou dificuldades no trânsito. É claro que a empregada não vai poder entrar no gabinete atapetado onde o diálogo teria propícias circunstâncias ambientais, nem mesmo que previamente bata à porta como manda a boa educação, para não falar do respeito: tem de dar conta da sua pretensão ao chefe, que encaminhará o seu pedido ao director, que o transmitirá ou não superiormente, e o mais certo é que, dadas as arrasantes ocupações que pesam sobre o senhor administrador, a empregada terá de expor o seu problema ao director do Departamento de Recursos Humanos, ex-Secção de Pessoal, que foi admitido na empresa exactamente para tratar de tais chatices e dar-lhes o destino adequado, isto é, nenhum. Mas, desta forma, os problemas difíceis têm o tratamento certo e nunca por nunca são deixados «cair na rua». Embora bem se entenda que a essa empregada aqui mesmo inventada para exemplo, bem como a milhares de outros não inventados, muito apeteça falar dos seus problemas e apelar para a sua resolução precisamente na rua, onde não há portas a que seja preciso bater previamente nem directores de relações humanas para embrulhar as suas razões em paleios de que já muito bem se conhece a música.

Onde entra a memória

Aliás, quando ouvi nos tais dias recentes os sujeitos de excelente aspecto dizerem que certos assuntos não são para «a rua», a minha memória trouxe-me um episódio da História do meu País ocorrido há já trinta e dois anos: nele, um cavalheiro de óculos e ar embatucado, Marcelo de seu nome, dizia estar disposto a render-se apenas a um general de monóculo «para que o poder não caia na rua». E, contudo, era mais na rua, isto é, na gente vibrante que a enchia, que nas armas dos militares que precisamente «na rua» encontravam a legitimidade sem a qual o seu risco seria vão, que estava a Revolução que havia de devolver ao País a dignidade e a esperança. Ora, esta recordação que aliás eu não chamara levou-me a pressentir uma espécie de parentesco entre os que hoje rejeitam «a rua» como lugar, ou melhor, como parceira de diálogo, e o senhor embatucado que há trinta e dois anos não queria que ela fosse lugar de poder. A questão é que, de facto, em ambas as situações dizer «a rua» é equivalente a dizer «povo» ou, se se quiser de outros modos, «esmagadora maioria da população», «sectores do País que com o desfavor com que são tratados pagam o favorecimento de que outros beneficiam». Assim, não querer tratar com «a rua» as questões que à «rua» muito interessam é, no mínimo, uma atitude denunciadora de falta de razões sólidas. E não se diga, porque é feio e é falso, que à «rua» falta bagagem para um diálogo válido. Não se diga porque, em último caso, sou capaz de responder com quatro versos de Armindo Cortes-Rodrigues: «Doutores de altos saberes / explicai a vida ao povo; / se ele não vos entender / precisais estudar de novo».
Mas não será preciso tanto: o povo, «a rua», entende-vos lindamente e, por outro lado, é capaz de se explicar na perfeição. E bem se sabe, ou pelo menos bem se adivinha, que é isso mesmo que faz com que sujeitos tão bem apessoados venham agora à televisão rejeitar «a rua».


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