Mais setenta

Correia da Fonseca
Como bem se sabe, a informação televisiva acerca do Mundial de Futebol foi praticamente exaustiva, não no eventual sentido de deixar exaustos alguns de nós, mas sim de nos ter informado de tudo, tudo, tudo. Ou quase, naturalmente, pois bem se sabe que em todas as situações e circunstâncias fica sempre alguma coisa por dizer. Parece que além do mérito propriamente informativo, o enorme volume de reportagens, entrevistas e iniciativas similares estimulava o empenhamento emocional dos portugueses na vitória da equipa nacional, e que esse empenhamento ajudava os jogadores a correrem, a chutarem, a baterem-se até para lá do aparente limite das suas forças. Assim, o apelo/slogan «Força Portugal» parecia ter duas direcções: a dos jogadores que na Alemanha representavam o País e a do País que por eles era representado. Do grau de eficácia desta enorme mobilização psicológica nunca se saberá ao certo, mas sabe-se que a equipa não ficou nada mal classificada, muito antes pelo contrário, e que Luís Filipe Scolari, que parece acumular indispensáveis sabedorias na área do futebol com não menos úteis saberes na arte de conviver, comandar e seduzir, recebeu a sua imaginária coroa de louros «paga» com o suor dos seus pupilos. No meio de tudo isto, ninguém negará que a TV teve um papel decisivo para a mobilização nacional, dir-se-ia até que à beira de ser excessivo, pois não foram poucos os cidadãos que deram sinais de enjoo perante o volume da avalanche informativa, as quase desvairadas tiradas de apoio que muitas vezes se registaram, o despropósito de algumas intervenções de jornalistas cujas responsabilidades eram obviamente maiores que as do apoiante comum. Diz-se que o que é de mais enjoa. Mas também se diz que tudo está bem quando acaba bem, pelo que o que há a fazer é encaixar o que menos tenha agradado e passar adiante.

Uma rápida notícia

É claro que a hegemonização da informação acerca do Mundial na televisão portuguesa não podia ser impeditiva, como não foi, de que outras notícias tenham chegado aos telespectadores. Vindas do estrangeiro, tiveram especial e justo destaque as relativas à grave crise timorense, e teve amarga graça ver e ouvir certos comentadores a quase insinuarem que o apoio português à independência de Timor foi um erro, que mais valera deixar aquilo entregue à Indonésia. No plano nacional informaram-nos das coisas do costume: uns acidentes rodoviários, uns crimes relacionados com pedofilia, as medidas do governo. Houve, porém, uma breve informação, quase direi que fugidia, que me deixou a pensar: disse-me a TV que num relativo período de tempo, coisa para um trimestre, morreram em acidentes de trabalho mais setenta trabalhadores, na maioria operários da construção civil mas não só. Quer dizer, a hecatombe continua. Às vezes, a propósito dos acidentes rodoviários em que, como se sabe, também estamos no topo das estatísticas, fala-se em «guerra da estrada», até por vezes há breves debates televisivos, anuncia-se mais providências, a televisão reflecte um sentimento de consternação geral. Perante a notícia de que morreram mais setenta trabalhadores enquanto precisamente tentavam ganhar a vida, não acontece nada, só mesmo uma informação rapidinha em que muitos nem sequer terão reparado, que muitos outros terão rapidamente esquecido. Já não é, bem se sabe, a «guerra da estrada», mas parece ser também uma «guerra». Que guerra será aquela e quem serão os combatentes? Quanto a consternação à escala nacional, nem pensar nisso. A morte de trabalhadores enquanto trabalham parece ser uma coisa natural, trabalhador serve também para isso mesmo, para morrer a trabalhar dando razão às estatísticas. Às vezes, é certo, fala-se um pouco mais de um caso ou outro. Quase sempre para responsabilizar os trabalhadores, que são uns descuidados, que não serão capazes de dizer ao patrão qualquer coisa como «- Não, sem capacete não trabalho!» ou «- Não, sem resguardo consistente não subo para aquele andaime!». Mas nunca ouvi ninguém perguntar se os tempos e o actual estado do mercado de trabalho facilitam estas justíssimas recusas. A verdade é que, tendo morrido setenta, outros setenta acorrerão a preencher as vagas, pois desempregados é o que por aí não falta, e a vida continua. Mas não para todos.


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