Nos dias do Mundial
Depois de uma semana televisiva como a que passou, dominada pelo futebol e seus complementos, é quase inevitável que se registe aqui essa hegemonia. Não parece sequer justo reprovar a cobertura de um acontecimento de primeiríssima importância talvez não tanto desportiva quanto social como é o Mundial de Futebol, tanto mais que a equipa portuguesa está lá. Mas, precisamente, talvez o impacto social do acontecimento seja um pouco excessivo, e talvez para esse eventual excesso muito tenha vindo a contribuir os media em geral e a TV em especial. Não apenas entre nós, seguramente, até porque as mais poderosas televisões nos diversos lugares do mundo são cada vez mais irmãzinhas gémeas no essencial. Quanto à presença do futebol propriamente dito nos televisores, e sem cuidar dos negócios a que essa presença deu lugar, nada a objectar: o futebol é um jogo bonito de ver e bem se pode dizer que a sua transmissão resulta em programas verdadeiramente interessantes. Pode-se, é claro, odiar o futebol, mas isso resultará decerto de alguma confusão entre o jogo e o uso que dele é feito. E não serão precisas grandes congeminações para suspeitar que esse mau uso, ou uso indevido, também tem vindo a acontecer quanto a este Mundial e entre nós. É certo que, sendo as coisas o que são, uma actuação destacada da equipa portuguesa conferiria uma apreciável visibilidade ao nosso País e muitos seriam os que, por esse mundo fora, aprenderiam com surpresa que Portugal não é uma região de Espanha. Por outro lado, haverá talvez que ponderar a informação optimista que Marcelo Rebelo de Sousa incluiu nas suas «Escolhas»: que o futebol é das pouquíssimas actividades em que estamos entre os melhores do mundo. De acordo, pois, em que sigamos o Mundial com atenção e que a TV nos ajude a fazê-lo. Mas, se tanto puder ser, sem desvarios que podem resultar em amarguras e, de qualquer modo, são nocivos à lucidez que sempre é bom guardar, mesmo em circunstâncias de importância aparentemente menor.
Os outros portugueses
Há uma razão, pelo menos, para que desejemos vitórias portuguesas e nos entristeçamos com derrotas neste Mundial: os nossos emigrantes por esse mundo fora, mas sobretudo na Europa. Imagino que se miraculosamente a equipa portuguesa vencesse o torneio, milhares de emigrantes que durante anos e anos se sentiram discriminados, olhados como europeus-de-segunda, porventura humilhados, sentiriam um precioso reconforto, pouco ou nada importando se justificado ou não. Este quadro não justifica o «boom» de patriotismo um pouco tonto consubstanciado pela profusão de bandeiras e cachecóis, mas será factor a lembrar. No plano do «consumo interno» do Mundial, as coisas são diferentes e implicam um risco: o de a febre do Mundial ser utilizada como analgésico ou narcótico, tal como de resto o futebol sempre é usado, bem o sabemos. Mas é duvidoso que as vitórias portuguesas tenham aliviado a angústia das famílias atingidas pelo desemprego ou dos milhares de velhos entregues às múltiplas carências. Lembrando-o, não se preconiza que se abandone a cobertura do Mundial e o interesse pela boa presença da equipa portuguesa, mas sim que a TV preste uma atenção mais demorada ao que vem acontecendo a muitos portugueses que não jogam futebol nem foram à Alemanha «dar força à nossa equipa». É certo que muitas vezes sabemos pela TV de mais um punhadão de trabalhadores que perderam o emprego e durante alguns breves dias até temos notícias da sua resistência. Porém, e depois? É claro que a vida quotidiana desses portugueses nos tempos seguintes seria tema para reportagens esclarecedoras do que é hoje o «país real», reportagens que seriam também actos de solidariedade. E, então, a TV não seria quase apenas o futebol do Mundial, que veio juntar-se à habitual ementa de base organizada com desastres, crimes e escandalozinhos supostos ou efectivos. Mas não, a esses portugueses perdemo-los de vista. Agora, a TV parece só ter olhos verdadeiramente interessados para o Mundial e muito pouco mais. E quando o Mundial terminar, ou terminar nele a participação portuguesa, alguma coisa se há-de arranjar. Mas não coisas tristes, coisas que nos deprimam (de onde a profusão de programas ditos cómicos nos canais de maior audiência). Ou dizendo o mesmo com mais verdade: nada que nos faça pensar.
Os outros portugueses
Há uma razão, pelo menos, para que desejemos vitórias portuguesas e nos entristeçamos com derrotas neste Mundial: os nossos emigrantes por esse mundo fora, mas sobretudo na Europa. Imagino que se miraculosamente a equipa portuguesa vencesse o torneio, milhares de emigrantes que durante anos e anos se sentiram discriminados, olhados como europeus-de-segunda, porventura humilhados, sentiriam um precioso reconforto, pouco ou nada importando se justificado ou não. Este quadro não justifica o «boom» de patriotismo um pouco tonto consubstanciado pela profusão de bandeiras e cachecóis, mas será factor a lembrar. No plano do «consumo interno» do Mundial, as coisas são diferentes e implicam um risco: o de a febre do Mundial ser utilizada como analgésico ou narcótico, tal como de resto o futebol sempre é usado, bem o sabemos. Mas é duvidoso que as vitórias portuguesas tenham aliviado a angústia das famílias atingidas pelo desemprego ou dos milhares de velhos entregues às múltiplas carências. Lembrando-o, não se preconiza que se abandone a cobertura do Mundial e o interesse pela boa presença da equipa portuguesa, mas sim que a TV preste uma atenção mais demorada ao que vem acontecendo a muitos portugueses que não jogam futebol nem foram à Alemanha «dar força à nossa equipa». É certo que muitas vezes sabemos pela TV de mais um punhadão de trabalhadores que perderam o emprego e durante alguns breves dias até temos notícias da sua resistência. Porém, e depois? É claro que a vida quotidiana desses portugueses nos tempos seguintes seria tema para reportagens esclarecedoras do que é hoje o «país real», reportagens que seriam também actos de solidariedade. E, então, a TV não seria quase apenas o futebol do Mundial, que veio juntar-se à habitual ementa de base organizada com desastres, crimes e escandalozinhos supostos ou efectivos. Mas não, a esses portugueses perdemo-los de vista. Agora, a TV parece só ter olhos verdadeiramente interessados para o Mundial e muito pouco mais. E quando o Mundial terminar, ou terminar nele a participação portuguesa, alguma coisa se há-de arranjar. Mas não coisas tristes, coisas que nos deprimam (de onde a profusão de programas ditos cómicos nos canais de maior audiência). Ou dizendo o mesmo com mais verdade: nada que nos faça pensar.