A derrocada dos valores

Jorge Messias
Há não muito tempo, uma publicação católica de referência – a revista Além-mar – publicou uma bem estruturada série de reflexões sobre a religião e a sociedade da globalização. Foram apontadas questões essenciais de um panorama geral que os crentes caracterizam como «eclipse de Deus» e o racionalismo laico considera ser a «derrocada dos valores». As linguagens são naturalmente diferentes. Uma é teológica, a outra laica. Mas ambas as conclusões vão a par. O que significa que no interior do mundo católico parece regressar uma linha ética de fé atenta à condenação activa dos crimes sociais do mercantilismo. De um pensamento que se atreve a fazer a crítica dos dogmas da própria religião, das alianças da hierarquia e da forma simples e passiva como os crentes se deixam ofuscar pelo materialismo sem escrúpulos que o mercado e a globalização arrastam consigo. «A Europa parece ter descartado Deus e como ela procedem o resto do Ocidente e uma boa parte do mundo. Porque, ao mesmo tempo que a globalização difunde até aos confins do planeta as novas técnicas e as novas formas de sujeição económica, espalha igualmente novas maneiras de estar, de sentir e de pensar... é um fenómeno cultural que afecta todas as formas do quotidiano... Um novo tipo de escravidão surge, focado nos grandes lucros e nas vidas baratas dos produtores... A sociedade actual tem levado ao abandono de Deus... Isto não é somente uma questão de escolha pessoal, nem se resume a uma menor frequência da Igreja. É um fenómeno cultural que afecta todas as formas do quotidiano».

O despertar das consciências

Actualmente, a doutrina social da igreja adorna-se com um discurso piedoso que serve para encobrir os verdadeiros propósitos da hierarquia, que são ambiciosos, duros e materiais. Por exemplo, no caso português que melhor se conhece, por estar mais perto de nós, os bancos alimentares privilegiam as vendas das grandes superfícies; a ética cristã nos negócios ensina os ladrões a acoitarem-se na santidade; as Santas Misericórdias gerem grandes negócios, exploram os jogos de azar e acumulam lucros gigantescos; as IPSS e ONGS confessionais revelam-se como redes de ocupação da área social do Estado; o chamado voluntariado sócio-caritativo, supostamente gratuito, é cada vez mais garantido, pago e gerido pelo marketing dos grupos económicos transnacionais; a famosa sociedade civil em rede, transportada à força para a comunicação social, já fez prova da sua total falência cultural e de ser baluarte do obscurantismo. E o mesmo se pode dizer em relação a todas as funções políticas e sociais que o Estado português a cada passo mais transfere para a igreja: o ensino, a saúde, a protecção à terceira idade e aos menores, as migrações, a deficiência, o combate à droga, ao fim e ao cabo, todos os postos-chave da nossa vida colectiva. E não falemos (mas não esqueçamos) nos imensos impérios políticos e financeiros do Opus Dei e das Fundações do Patriarcado: a banca, as seguradoras, a formação de quadros, as promiscuidades partidárias, o controlo dos clubes de desporto e da publicidade, a posse do património cultural...
Tão grande é a euforia do sucesso que os príncipes da igreja sobem aos seus castelos, cercam-se das suas cortes, celebram as suas vitórias, mas perdem todo o contacto com o povo e com as terríveis dificuldades dos humildes. Lá se vai, então, o espírito cristão mais a doutrina social da igreja!
A tendência católica que timidamente começa a renascer, admite que a humanidade caminha para o suicídio físico e moral. Que a pobreza pode ser extinta em todo o mundo. Que o alvo central das religiões deve ser, muito mais o Homem concreto e muito menos Deus, no abstracto. Que o discurso social das hierarquias é mentiroso e imoral. E que importa aos crentes proclamarem sobre os telhados aquilo que pensam ser honesto e justo. Por isso se saúda o regresso da questão social e da autocrítica. As consciências podem deixar-se enganar. Mas nunca se extingue o espírito que as liga aos valores que foram, um dia, a base viva do seu projecto utópico inicial.
Ao cidadão agnóstico contemporâneo nada preocupa o futuro da Igreja. A sua sorte será ditada pela sua acção. Coisa distinta são os valores que cada pessoa transporta em si. São as reacções dos crentes face aos crimes do capitalismo quando este esmaga com as suas botifarras de oiro os pobres e os fracos. A sua cumplicidade, sempre que se ajoelha aos pés de uma hierarquia sedenta de poder e de dinheiro.
É bom que os católicos se interroguem acerca da dignidade dos comportamentos da igreja. E que assumam, sem medo e sem preconceitos, as responsabilidades éticas que os ligam ao povo a que pertencem.


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