Colecção Berardo

A colecção, o bimbo, o Primeiro-Ministro e o seu assessor cultural

Manuel Augusto Araújo
Vai o Museu Colecção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea ocupar durante dez anos todo o Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém. O CCB deixa de ter programação própria, subordinando-se aos ditames de uma fundação presidida a título vitalício pelo comendador e com mais cinco administradores, sendo dois nomeados pelo Ministério da Cultura, dois pelo coleccionador e um de comum acordo. Não entendendo o comendador nada de arte, sabe que vai ter uma administração favorável aos seus interesses. Aliás, durante as negociações entre as ameaças de desandar com a colecção para uns quantos países cobiçosos dessa distinção, o que fazia em estilo grosso ao jeito de futebolista com algum gabarito a negociar novo contrato, o comendador gastava o resto das negociações a telefonar ao Sócrates a fazer queixinhas da ministra. O primeiro-ministro não tugiu e só mugiu no dia da assinatura do acordo lamentando terem-se perdido dez anos para se chegar ali, sem assinalar que se iam iniciar outros dez anos, de custos ainda não calculados para o estado e para a cultura, provavelmente perdidos, já que nada garante que a parte da colecção que fica em regime de comodato no CCB, não seja vendida por Berardo a quem lhe der mais. Mas quem assim fala por dá cá aquela palha com o primeiro-ministro mais rapidamente falará para garantir que o administrador de comum acordo seja só do seu acordo, e somar mais poder ao enorme poder que lhe foi dado de bandeja. Não por acaso o assessor cultural do Sócrates, ex – funcionário a tempo parcial do comendador, remetido a prudente silêncio enquanto segurava o telefone para garantir ao ex-patrão linha directa com o primeiro e manobrava na sombra para que fossem aceites todas as exigências berardas, perde o tino para vir a correr dizer publicamente «dado que já colaborei com ele (Berardo) qualquer hipótese terá que ser ponderada». O coitado, uma forma de dizer porque coitados somos nós que pagamos com os nossos impostos estas farsas, estava tão sôfrego que nem se ralou em dar um tempito aos vícios privados para parecerem públicas virtudes. Vai daí, sem sequer se preocupar que as promiscuidades entre o estado e os privados passassem de dúvidas sussurradas a certezas sem ambiguidades, propôs-se saltar de assessor de José Sócrates, com papel central e activíssimo em todo este processo, para administrador da fundação ou se calhar até acumular os dois cargos. Exemplos deste princípio dos vasos comunicantes não faltam, é só olhar para os Pinas Mouras que por aí andam, mas sempre tem havido um tempo de nojo. Viúvas do estado só passado tempo de carpidura desposam os privados, mesmo que antes já tenham resfolgado na mesma cama. O comendador que conhece melos à patada e de ginjeira é que já deve ter tirado essa carta do baralho. Precisa de novos actores para que estes dez anos em montra privilegiada sejam bem rentabilizados.
Dez anos em que o estado, além de ter entregue praticamente o controlo de uma área fundamental do CCB, vai contribuir com cinco milhões de euros para a aquisição de obras a integrar na colecção (*). Um escândalo conhecendo-se como se conhecem as limitações dos orçamentos atribuídos à cultura em geral e as imensas dificuldades com que se debatem os museus. Subitamente, uma colecção privada que, passado os seus primórdios a incidirem sobretudo na pop-arte e no minimalismo, é uma espécie de ilustração peça a peça do que se pôde comprar para preencher aquele quadrado da letra à letra dos movimentos e das tendências da arte contemporânea, ao modo daquele intelectual da Náusea do Sartre que estuda filosofia mas não sabe quem é Diderot porque ainda só vai na letra C da enciclopédia, torna-se num instrumento cultural indispensável para o país.
É tão excepcional que faz José Sócrates meter a ministra no bolso e ajoelhar-se às exigências do comendador depois de, certamente por distracção, não ter interferido quando o Ministério da Cultura não cedeu ao que queriam os privados para participarem na Fundação da Casa da Música. O melhor é que feito o negócio a colecção parece não ser tão excepcional quanto isso. Legítimas dúvidas existem e vão sendo expressas sobre as 863 obras, algumas excepcionais, que num disparate sem nome vão atulhar o CCB sem dar espaço para outras e significativas exposições.
Há quem diga que o comendador alcançou a imortalidade. O olhar enigmático da Mona Lisa queimará os neurónios dessa gente? Não percebem que no meio da comédia há um auto proclamado vencedor preparado para daqui a dez anos embolsar as mais valias que a vitrina CCB irá proporcionar. Aí veremos se a colecção não viaja para outras paragens ou não é desmembrada como já foi previsto. O que Berardo quer é cacau! Picassos não o comovem!
Para o quadro negro das políticas deste governo só faltava entregar a política cultural a interesses privados! Está feito! Não só por isto, mas também por isto é um imperativo patriótico correr com esta gente!



(*) Uma dúvida: ao fim de dez anos o estado português não compra a colecção pelo valor calculado por uma entidade supostamente independente, a sua escolha está dependente da aprovação do coleccionador. Para onde vão as obras entretanto adquiridas? Cortam-se ao meio? Sorteiam-se?


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