As inúteis conspirações

Correia da Fonseca
Em dias recentes, a propósito ou não do que talvez possa designar-se por Caso Carrilho, mais de um comentador/analista acusou o antigo ministro da Cultura de tentar invocar a seu favor o que seria uma Teoria da Conspiração. E a acusação veio sempre formulada com um tom desdenhoso de compaixão por uma alegação que seria absurda porque, averiguadamente, conspirações não existem, o que existe é uma natural e quase inevitável convergência de opiniões ou de acções. E a explicação ganha força quando se imagina o que uma Teoria da Conspiração implica ou sugere: reuniões quase secretas entre indivíduos dispersos, planeamento de estratégias concertadas, porventura troca de mensagens e de sinais feitos à socapa, um verdadeiro clima de filme de mistério, tudo para desfeitear o Carrilho e castigar o seu narcisismo. Impensável, pois claro. E, porque impensável, se as alegações de Manuel Maria Carrilho implicam a denúncia de uma conspiração urdida, tanto pior para ele, que a todos os pecados anteriores acrescenta o ridículo de uma conspiração fantasmagórica. Felizmente que por cá, por este jornal e seus vastos arredores, não fomos apoiantes de Manuel Maria Carrilho nas eleições para a Câmara de Lisboa, pelo que não temos nada com a guerra Carrilho/media que depois se desencadeou. Regista-se, isso sim, as palavras com que ele já lamentou não ter feito mais para conseguir uma coligação de esquerda que, a exemplo de eleições anteriores, derrotasse a direita em Lisboa. Como se sabe, foi sempre isso que os comunistas preconizaram. Mas esse é um outro capítulo da estória, sem nada a ver com a polémica que teve o seu clímax televisivo na emissão do «Prós e Contras» em que Carrilho e Ricardo Costa disseram desagradáveis coisas um do outro perante o notório embaraço de Pacheco Pereira, com um longo currículo de acusações aos jornalistas e ali arrolado para contribuir para a sua absolvição.

Por experiência própria

Porém, o que tem interesse para esgravatar um pouco é a frequente alusão, em registo de desdém, do absurdo de supostas «teorias da conspiração». Fala-se nelas para sustentar que, sendo óbvio que não existem conspirações nenhumas, o que os media repetem em maior ou menor consenso é seguramente correcto, verdadeiro, bacteriologicamente puro, prontinho para entrar na História. Ora, acontece que as coisas não são bem assim, e também nestes casos é prudente examinar com cuidado a mercadoria que nos querem impingir em apetitosa embalagem antes de a comprarmos. Exemplifiquemos um pouco, imaginando um caso concreto. Se eu for um sujeito poderoso, se da minha vontade dependerem dezenas de carreiras profissionais de topo regiamente remuneradas, e se for conhecido que a eleição de Fulano para um cargo político me desagradaria por ameaçar interesses meus, não preciso de dar instruções aos que de mim dependem para se concertarem e usarem os media para arrasarem o sujeito eventualmente perigoso; espontaneamente, diligentemente, os meus «súbditos» farão o trabalho necessário, cada qual querendo mostrar-se mais empenhado que o outro, mais fiel, mais merecedor de uma recompensa. Para disparar calúnias ou semicalúnicas, mentiras chapadas ou hábeis distorções, não são precisos conluios, reuniões discretas, conspirações enfim: a natureza e o caldo social deram a certos indivíduos uma capacidade de praticar infâmias de tal modo elevada que são perfeitamente capazes de desempenharem as mais sórdidas tarefas sem a necessidade de conspirarem. Também na comunicação social, naturalmente. Pelo que é perfeitamente inútil que depois venha um douto cavalheiro à TV ironizar sobre teorias da conspiração. E cabe acrescentar, pois é mesmo o que pode dar sentido e justificação a este texto, que os comunistas e o seu Partido sabem muito bem que o bombardeamento de falsidades e infâmias de que constantemente são alvos não resulta de nenhuma organização conspirativa: emergem naturalmente, na sua maior parte, de subserviências, venalidades, frenéticas preocupações com o politicamente correcto de que a primeira regra é ser anticomunista. Ninguém precisa de dar ordens, de sequer exprimir desejos: as ordens e os desejos são facilmente adivinháveis. Não é preciso nenhuma conspiração. Nós, os comunistas, bem o sabemos.


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