Da França que diz «Non»

Correia da Fonseca
Dos protestos ocorridos no passado fim-de-semana não apenas em Paris como em toda a França, trouxe a televisão notícias e imagens, não muitas, e comentários em estúdio, raros ou nenhuns. Informações de correspondentes, também, em «flashes» breves, mas essas arrolo-as eu como notícias, o que me parece razoável. De tudo isso, o que achei mais curioso foram certas imagens que se obstinavam sobre o triste espectáculo de carros a arder, de montras partidas e de outros mudos testemunhos de vandalismo. É que não faziam sentido. É claro que não era caso para duvidar da autenticidade das imagens, era o que faltava, mas a questão é que aqueles estragos não eram coerentes com as razões que levaram às ruas muitas centenas de milhares de franceses, nem com o discurso e o tom dos responsáveis pela convocação das manifestações. Sabe-se o que aconteceu: o governo Villepin decidiu que os jovens até aos 26 anos de idade haveriam de trabalhar no seu primeiro emprego, durante os dois anos iniciais, sob o constante risco de serem despedidos sem qualquer razão; os jovens, e não só eles mas também a esmagadora maioria dos franceses, acham que essa violência legislativa é insuportável. E aduzem argumentos sólidos, alguns dos quais é fácil imaginar sem necessidade de dotes adivinhatórios: entende-se que haveria muitos patrões que fariam «rolar» sucessivamente jovens naquelas condições de modo a iludirem permanentemente as garantias da legislação laboral quanto a estabilidade de emprego; percebe-se que nenhum jovem com menos de 26 anos, mesmo com formação superior, poderia pensar em constituir família estando empregado por conta de outrem, pois sem mínima estabilidade profissional não pode haver planos de estabilidade familiar; é absurdo, quase insultuoso, querer convencer uma população de que o patrão precisa de observar um empregado durante dois anos para se certificar de que ele é competente. E, já se vê, imagina-se a força que uma prepotência assim, tornada lei da República, daria ao patronato sempre insaciável, sempre ávido de mais «flexibilidade laboral», para novas e mais clamorosas reivindicações.

Usando a me­mória

Voltemos, porém, aos carros a arder e às montras em cacos que a televisão nos mostrou. Estavam lá, sem dúvida, diante das câmaras, não foram as equipas de reportagem que as inventaram. Mas eram aparentemente inexplicáveis: o que os estudantes, os trabalhadores convocados pelos sindicatos de diversas tendências, os franceses em geral, pretendem é a revogação de uma lei iníqua e tendencialmente provocatória, não é a destruição das cidades. Muito provavelmente, uma grande parte dos manifestantes tem carro, que há muito já deixou de ser sinal de privilégios sociais. Assim, como explicar que o incêndio de carros, como a destruição de montras e de equipamentos sociais públicos, tenha surgido mais uma vez quase como emblema mediático de manifestações justificadíssimas? Já agora, complete-se esta interrogação com uma outra: a quem interessa o desprestígio que as imagens de vandalismo implicam para as manifestações, ao nível da chamada opinião pública, sobretudo se pretensamente moderada, sensata? A resposta é óbvia e não é fácil encontrar outra: interessa aos que estão «do outro lado» dos manifestantes, não só e não tanto aos directos agentes da repressão mas também e sobretudo aos que querem implementar as leis rejeitadas. Ora, quem tenha memória sabe de anteriores e muitas experiências, algumas das quais já entraram na História: sabe que o recurso aos bons serviços de provocadores contratados para a prática de violências várias é um método já clássico no apoio a medidas legislativas infames ou simplesmente inaceitáveis, na descredibilização de protestos populares justíssimos mas embaraçosos para os grandes interesses. Por isso lamentei, não que as TV’s tenham trazido a nossas casas as imagens de carros a arder e das montras espatifadas, mas que não tivessem completado essa informação pela imagem com a presença de um comentador que honestamente viesse enquadrá-las num ângulo de plausibilidade e de reflexão. Na verdade, não me dei conta de que tivesse acontecido tal coisa. E, contudo, era consensual que se tratava de acontecimentos que não interessavam apenas à França mas sim, e muito, a toda a Europa, pelo menos. Em compensação, continuam a afluir aos nossos ecrãs muitos comentadores de futebol. Não espanta: é a televisão portuguesa.


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