Cidadania e Liturgia da Palavra
No espaço vazio que sempre acompanha campanhas eleitorais - a rotina e o inesperado, o absurdo e o consequente - o desempenho de Manuel Alegre não desiludiu. O candidato repartiu o seu tempo entre as romagens de cristão-novo às terras dos heróis e mártires já falecidos e o desfraldar da bandeira política que viria a ser responsável pelo milhão de votos que, inesperadamente, conseguiu reunir: a defesa do «direito de cidadania», tema tão do agrado dos seus leais conselheiros.
O assunto escolhido merece, sem dúvida uma grande atenção. Mas terá de ser analisado no seu contexto institucional, no espírito e na letra da Constituição da República que abrange todos os direitos e todos os deveres dos trabalhadores, do povo português em geral e do próprio Estado. Porque a fórmula direito de cidadania soa bem aos ouvidos mas esvazia-se de conteúdo se não for dito que o conceito exprime, afinal, as conquistas concretamente alcançadas pelo povo desde o 25 de Abril. Que nos recordemos, Manuel Alegre fugiu sempre a este esclarecimento. Só quando reconheceu a sua relativa derrota, se referiu ao facto de não se arrepender de ter batido nesta tecla básica da cidadania. E também disse esperar que no futuro, um pouco por toda a parte, no território nacional, surjam movimentos em defesa do desenvolvimento local, da habitação condigna, do ensino público, etc. Tudo isto, porque os partidos políticos para nada já servem. Nem os sindicatos, tal como estão. Será necessário repensar toda a estrutura social. Dinamizar os movimentos espontâneos de base. Estabelecê-los em rede. Todos os partidos actuais são corruptos. A única solução consiste em dar voz aos que não têm voz e em lançar os alicerces de uma nova ordem social baseada na proximidade dos pobres e dos oprimidos. Ainda que a utopia seja como um poema, este discurso de Alegre parece-nos familiar. Ensina a melhor receita culinária da liturgia da palavra que de há muito procura, a todo o transe, transformar-se em ciência social e encontrar uma linguagem própria que influencie o homem comum. Pela calada divide, para depois reinar.
Lutar pelo respeito da cidadania
Acerca de cidadania, o que pode ler-se na Constituição da República resume-se a três linhas incompletas, de sabor burocrático: «São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional». Mas, vendo bem, antes e depois deste artigo 4.º, todo o texto da Constituição gira em torno da garantia e da definição dos direitos e deveres dos cidadãos para com a sociedade , estabelecendo-se as bases legais do Estado democrático e das suas leis em relação à família, aos partidos, às instituições associativas de ajuda mútua e de classe, etc., uma doutrina de direito em que qualquer democracia se deve fundamentar. Debilitar esta relação de forças é minar os alicerces da própria Constituição. É legítimo fazer-se esta leitura das propostas que visam transferir poderes e obrigações do Estado para movimentos espontâneos das populações.
Aliás, como seria de prever, esta tese da espontaneidade do poder público vai sendo aos poucos abandonada pelos seus autores. Horas após a vitória eleitoral de Cavaco Silva, já os leais conselheiros de Manuel Alegre vinham declarar «não podemos abandonar as pessoas que confiaram em nós», «é útil e desejável que as pessoas voltem a encontrar-se», «vamos prosseguir. Não faltam causas para combater: a justiça, a paridade, a cidadania, a desertificação do País, os novos desafios da agricultura, a concorrência pela qualidade». Assim, o modelo a retomar pelo movimento de Alegre será a SEDES, uma associação para o desenvolvimento bem conhecida pelos mais velhos de nós. A sua instalação foi autorizada por Marcelo Caetano em 1970, já o regime fascista abria grandes fendas nas suas estruturas. A SEDES foi a matriz onde se geraram os políticos e os banqueiros que poucos anos mais tarde, após o 25 de Novembro, assumiram as rédeas do poder e as conservam ainda nas suas mãos. Tal como 50 anos antes sucedera com o CADC coimbrão, berço político de Salazar e de Cerejeira, também a SEDES teve, e mantém, poderosas influências dos sectores mais conservadores da igreja. A SEDES nunca foi um partido mas um movimento cívico com estruturas de partido. É este o modelo que os socialistas anti-socialistas procuram reeditar.
Trata-se de uma movimentação a acompanhar atentamente. Fiquemos certos de que nem os actuais órgãos do poder, nem a igreja, e muito menos o mundo financeiro e empresarial, se irão opor a qualquer tentativa de enfraquecimento do Estado democrático. E de que a oratória demagógica de Alegre decorre do pior da Liturgia da Palavra neoliberal.
O assunto escolhido merece, sem dúvida uma grande atenção. Mas terá de ser analisado no seu contexto institucional, no espírito e na letra da Constituição da República que abrange todos os direitos e todos os deveres dos trabalhadores, do povo português em geral e do próprio Estado. Porque a fórmula direito de cidadania soa bem aos ouvidos mas esvazia-se de conteúdo se não for dito que o conceito exprime, afinal, as conquistas concretamente alcançadas pelo povo desde o 25 de Abril. Que nos recordemos, Manuel Alegre fugiu sempre a este esclarecimento. Só quando reconheceu a sua relativa derrota, se referiu ao facto de não se arrepender de ter batido nesta tecla básica da cidadania. E também disse esperar que no futuro, um pouco por toda a parte, no território nacional, surjam movimentos em defesa do desenvolvimento local, da habitação condigna, do ensino público, etc. Tudo isto, porque os partidos políticos para nada já servem. Nem os sindicatos, tal como estão. Será necessário repensar toda a estrutura social. Dinamizar os movimentos espontâneos de base. Estabelecê-los em rede. Todos os partidos actuais são corruptos. A única solução consiste em dar voz aos que não têm voz e em lançar os alicerces de uma nova ordem social baseada na proximidade dos pobres e dos oprimidos. Ainda que a utopia seja como um poema, este discurso de Alegre parece-nos familiar. Ensina a melhor receita culinária da liturgia da palavra que de há muito procura, a todo o transe, transformar-se em ciência social e encontrar uma linguagem própria que influencie o homem comum. Pela calada divide, para depois reinar.
Lutar pelo respeito da cidadania
Acerca de cidadania, o que pode ler-se na Constituição da República resume-se a três linhas incompletas, de sabor burocrático: «São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional». Mas, vendo bem, antes e depois deste artigo 4.º, todo o texto da Constituição gira em torno da garantia e da definição dos direitos e deveres dos cidadãos para com a sociedade , estabelecendo-se as bases legais do Estado democrático e das suas leis em relação à família, aos partidos, às instituições associativas de ajuda mútua e de classe, etc., uma doutrina de direito em que qualquer democracia se deve fundamentar. Debilitar esta relação de forças é minar os alicerces da própria Constituição. É legítimo fazer-se esta leitura das propostas que visam transferir poderes e obrigações do Estado para movimentos espontâneos das populações.
Aliás, como seria de prever, esta tese da espontaneidade do poder público vai sendo aos poucos abandonada pelos seus autores. Horas após a vitória eleitoral de Cavaco Silva, já os leais conselheiros de Manuel Alegre vinham declarar «não podemos abandonar as pessoas que confiaram em nós», «é útil e desejável que as pessoas voltem a encontrar-se», «vamos prosseguir. Não faltam causas para combater: a justiça, a paridade, a cidadania, a desertificação do País, os novos desafios da agricultura, a concorrência pela qualidade». Assim, o modelo a retomar pelo movimento de Alegre será a SEDES, uma associação para o desenvolvimento bem conhecida pelos mais velhos de nós. A sua instalação foi autorizada por Marcelo Caetano em 1970, já o regime fascista abria grandes fendas nas suas estruturas. A SEDES foi a matriz onde se geraram os políticos e os banqueiros que poucos anos mais tarde, após o 25 de Novembro, assumiram as rédeas do poder e as conservam ainda nas suas mãos. Tal como 50 anos antes sucedera com o CADC coimbrão, berço político de Salazar e de Cerejeira, também a SEDES teve, e mantém, poderosas influências dos sectores mais conservadores da igreja. A SEDES nunca foi um partido mas um movimento cívico com estruturas de partido. É este o modelo que os socialistas anti-socialistas procuram reeditar.
Trata-se de uma movimentação a acompanhar atentamente. Fiquemos certos de que nem os actuais órgãos do poder, nem a igreja, e muito menos o mundo financeiro e empresarial, se irão opor a qualquer tentativa de enfraquecimento do Estado democrático. E de que a oratória demagógica de Alegre decorre do pior da Liturgia da Palavra neoliberal.