Viagem à devastação de Nova Orleães
No final de 2005, apenas 100 000 dos 480 000 habitantes de Nova Orleães viviam na devastada cidade. De 6 a 13 de Dezembro, a enfermeira parteira Ellen Catalinotto esteve como voluntária na Clínica Common Ground local. O texto que segue relata a sua experiência.
À medida que o meu voo meio vazio descia para o aeroporto Louis Armstrong, bocados de azul brilhante no chão reflectiam por todo o lado a luz do sol. Descobri mais tarde que eram as chapas que agora cobrem dezenas de milhares de telhados após a passagem do Furacão Katrina. Eric, o jovem que coordena os voluntários de assistência médica, conduziu-me do aeroporto até à clínica em Algiers, o maior subúrbio afro-americano de Nova Orleães na margem ocidental do Mississippi. Na auto-estrada I-1o passámos pelo Superdome onde milhares procuraram abrigo mas de onde saíram sem comida, água ou cuidados médicos depois da passagem devastadora do furacão. Nas proximidades fica a ponte sobre o rio Mississippi onde agentes da autoridade e deputados do maior subúrbio branco de Gretna voltaram costas às pessoas que tentavam escapar para terra seca ao longo do rio.
A Clínica Common Ground funciona ao ar livre numa mesquita em Algiers, um arrabalde que não foi atingido. Malik Rahim, activista comunitário e antigo Pantera Negra, montou a clínica poucos dias depois do furacão Katrina. «Solidariedade, não caridade» é a sua palavra de ordem. A equipa de enfermeiros, médicos, estudantes de medicina, técnicos de emergência médica, herbalistas, acupuncturistas, massagistas terapêuticos e assistentes de saúde mental vieram de todo o país para oferecer os seus serviços. Cerca de 200 trabalhadores de saúde estiveram envolvidos, alguns durante uns dias ou semanas e outros permanecendo aqui desde Setembro. Actualmente está em curso uma campanha para tornar a clínica permanente. Charité, o hospital que tratava dos pobres sem seguro de assistência desde 1736, é agora obrigado a estar fechado.
Com espaço, trabalho e mantimentos oferecidos, a clínica de Algiers prestou assistência nos últimos três meses a 7000 pacientes por um custo de cerca de um dólar por pessoa. Outros 3000 pacientes foram tratados por voluntários da Common Ground em clínicas satélite instaladas na cidade e em consultas ao domicílio. Toda a assistência é gratuita. Sem facturas ou formulários de seguros para preencher, o trabalho burocrático é mínimo: os assistentes registam apenas os dados essenciais e algumas notas sobre os doentes.
A ajuda que o governo não prestou
Logo após o Katrina ter passado, as pessoas vieram à procura da assistência médica e cuidados de primeiros socorros que o governo não providenciou. Três meses passados, a maioria das consultas deve-se ao tétano, hepatite e vacinas para a gripe, renovação de receitas para doenças crónicas - especialmente tensão arterial alta, doenças cardíacas e diabetes - ou indisposições como tosse, constipação e asma. A tensão alta é muito comum na população afro-americana local, mesmo entre pessoas a quem a doença não foi diagnosticada.
Paralelamente aos cuidados de saúde, os doentes têm à disposição um vasto leque de terapias alternativas, desde as naturistas à acupunctura e massagem, seja para tratar indisposições e dores ou para reduzir o stress e ansiedade causados pelo desastre. Amiúde, enquanto os pacientes esperam para ser atendidos, um assistente social ou um psiquiatra vem falar com eles para averiguar se necessitam de cuidados de saúde mental.
Um dia trabalhei numa clínica satélite numa igreja frequentada sobretudo por imigrantes da América Central, satisfeita por encontrar a minha própria paciente grávida, que deu à luz com sucesso o seu quinto filho. Os pacientes desta clínica são jovens saudáveis que trabalham na limpeza e reconstrução pós Katrina. Iludidos com promessas de bons empregos, são geralmente instalados ao monte e em condições de insalubridade e fazem trabalhos perigosos sem o devido equipamento de protecção. A maioria vai à clínica para se vacinar e com problemas respiratórios.
Na minha primeira noite em Nova Orleães dormi num acampamento da FEMA instalado num terreno com água canalizada e sistema de esgotos a cerca de meia milha da clínica de Algiers. Oito tendas pessoais estavam montadas à volta do gigantesco tanque da água. Havia reboques para duches, sanitários portáteis e filas de lavatórios de água fria para lavar os dentes. O campo trepidava com o zumbido de geradores portáteis que forneciam algum calor às tendas, mas não o suficiente para se estar confortável com temperaturas nocturnas abaixo dos 5 graus. Havia também uma imensa tenda refeitório com capacidade para cerca de 100 pessoas. Como não há restaurantes abertos para almoçar, reforça-se nos pequenos almoços e nos jantares.
Depois do furacão, a especulação
Pude viajar pela cidade após ter sido convidada por um voluntário com carro a partilhar uma casa no distrito de Uptown. Devido à ausência de sinalização nas ruas, enganámo-nos muitas vezes no caminho e fomos obrigados a explorar diferentes partes da cidade e a voltar para trás no percurso entre a clínica e a nossa casa de hospedagem.
O bairro onde ficámos foi inundado até uma altura de cerca de 60 cm, mas as casas eram sólidas e não sofreram prejuízos sérios na sua estrutura. As pilhas de lixo nestas ruas eram um sinal de que as pessoas estavam a voltar a casa e a proceder à limpeza. Viajámos por outra zona igualmente com casa sólidas que foram inundadas até uma altura de cerca de 1.3 m. Continua a ser uma cidade fantasma sem electricidade, sem água e sem pessoas.
A 10 de Dezembro, cerca de 1500 pessoas manifestaram-se na baixa de cidade exigindo justiça para os sobreviventes do furacão, incluindo o direito a voltar à sua cidade e a ter uma palavra a dizer sobre todas as decisões respeitantes à reconstrução. Organizada pela Peoples Hurricane Relief Fund e pela Oversight Coalition, a manifestação exigiu casas, assistência médica, anulação de dívidas, reagrupamento familiar e responsabilização pelos milhares de milhões de dólares levantados em nome dos desalojados.
Nada do que tenhamos visto pode preparar-nos para a devastação de Lower Ninth Ward, uma das mais pobres e das mais degradadas áreas de Nova Orleães. A água veios dos diques com tanta força que um enorme cargueiro foi levantado e depositado em terra a cerca de 100 metros.
Fotógrafos e repórteres de televisão captaram imensas imagens, mas são retratos abstractos. Estar rodeado por todos os lados de entulho, casas em ruínas com o seu recheio por terra, pelo completo silêncio e pela ausência de qualquer outro ser humano, animal ou simples pássaros é chocante. Toda a gente que lá vai diz o mesmo: «Nunca vi nada assim».
Aqui um telhado roça no chão. Além não há vestígios da casa que lá estava. Árvores desenraizadas e carros parados em posições estranhas ao longo das casas destruídas. Um urso de peluche pendurado no braço de um sofá. Uma ventoinha pende do tecto de uma casa em ruínas. Uma sólida casa de dois andares intacta no meio dos destroços da vizinhança. Ali um buraco irregular no telhado do sótão, onde os moradores abriram caminho para fugir quando as águas chegaram.
Algumas histórias
Uma doente contou-me como teve de enfrentar a burocracia para conseguir um atrelado da FEMA quando ficou sem casa. Após muitos atrasos a sua petição foi finalmente aprovada. Mas quando pediu que o atrelado fosse instalado num terreno pertencente a um familiar em Algiers, disseram-lhe que apenas podia ficar na zona onde estava a viver provisoriamente. O local não tinha electricidade, água, nem outros serviços, mas foi o único local onde a FEMA instalou o atrelado. Esta política aparentemente irracional tem um objectivo: ‘limpar’ as partes mais importantes da cidade empurrando as famílias deslocadas para os bairros pobres, maioritariamente afro-americanos.
Um empresário branco de sucesso contou como enfrentou a tempestade no segundo andar da sua casa quando o primeiro piso ficou alagado. Mais tarde saiu no seu barco e resgatou muitos idosos que tinham ficado encurralados pela água. Após ter esperado em vão pelos helicópteros para levar as pessoas para terra, levou-as para sua casa. Tendo visto o completo falhanço do governo e dos organismos públicos na assistência às necessidades básicas da população afectada, passou de apoiante de George W. Bush a opositor das políticas do presidente.
Um médico do hospital local que reabriu parcialmente disse-me que a maioria dos clínicos e enfermeiras tinha voltado. Mas continua a haver uma desesperante falta de pessoal de enfermagem, de limpeza e de cozinha. Estes são os trabalhadores invisíveis até que o lixo se acumula e as camas ficam por fazer.
As pessoas agradecem-nos por virmos a Nova Orleães ajudar. Para mim foi um privilégio ser capaz de usar a minha experiência como parteira e trabalhadora dos cuidados de saúde num lugar e numa altura em que eram necessários.
A Clínica Common Ground funciona ao ar livre numa mesquita em Algiers, um arrabalde que não foi atingido. Malik Rahim, activista comunitário e antigo Pantera Negra, montou a clínica poucos dias depois do furacão Katrina. «Solidariedade, não caridade» é a sua palavra de ordem. A equipa de enfermeiros, médicos, estudantes de medicina, técnicos de emergência médica, herbalistas, acupuncturistas, massagistas terapêuticos e assistentes de saúde mental vieram de todo o país para oferecer os seus serviços. Cerca de 200 trabalhadores de saúde estiveram envolvidos, alguns durante uns dias ou semanas e outros permanecendo aqui desde Setembro. Actualmente está em curso uma campanha para tornar a clínica permanente. Charité, o hospital que tratava dos pobres sem seguro de assistência desde 1736, é agora obrigado a estar fechado.
Com espaço, trabalho e mantimentos oferecidos, a clínica de Algiers prestou assistência nos últimos três meses a 7000 pacientes por um custo de cerca de um dólar por pessoa. Outros 3000 pacientes foram tratados por voluntários da Common Ground em clínicas satélite instaladas na cidade e em consultas ao domicílio. Toda a assistência é gratuita. Sem facturas ou formulários de seguros para preencher, o trabalho burocrático é mínimo: os assistentes registam apenas os dados essenciais e algumas notas sobre os doentes.
A ajuda que o governo não prestou
Logo após o Katrina ter passado, as pessoas vieram à procura da assistência médica e cuidados de primeiros socorros que o governo não providenciou. Três meses passados, a maioria das consultas deve-se ao tétano, hepatite e vacinas para a gripe, renovação de receitas para doenças crónicas - especialmente tensão arterial alta, doenças cardíacas e diabetes - ou indisposições como tosse, constipação e asma. A tensão alta é muito comum na população afro-americana local, mesmo entre pessoas a quem a doença não foi diagnosticada.
Paralelamente aos cuidados de saúde, os doentes têm à disposição um vasto leque de terapias alternativas, desde as naturistas à acupunctura e massagem, seja para tratar indisposições e dores ou para reduzir o stress e ansiedade causados pelo desastre. Amiúde, enquanto os pacientes esperam para ser atendidos, um assistente social ou um psiquiatra vem falar com eles para averiguar se necessitam de cuidados de saúde mental.
Um dia trabalhei numa clínica satélite numa igreja frequentada sobretudo por imigrantes da América Central, satisfeita por encontrar a minha própria paciente grávida, que deu à luz com sucesso o seu quinto filho. Os pacientes desta clínica são jovens saudáveis que trabalham na limpeza e reconstrução pós Katrina. Iludidos com promessas de bons empregos, são geralmente instalados ao monte e em condições de insalubridade e fazem trabalhos perigosos sem o devido equipamento de protecção. A maioria vai à clínica para se vacinar e com problemas respiratórios.
Na minha primeira noite em Nova Orleães dormi num acampamento da FEMA instalado num terreno com água canalizada e sistema de esgotos a cerca de meia milha da clínica de Algiers. Oito tendas pessoais estavam montadas à volta do gigantesco tanque da água. Havia reboques para duches, sanitários portáteis e filas de lavatórios de água fria para lavar os dentes. O campo trepidava com o zumbido de geradores portáteis que forneciam algum calor às tendas, mas não o suficiente para se estar confortável com temperaturas nocturnas abaixo dos 5 graus. Havia também uma imensa tenda refeitório com capacidade para cerca de 100 pessoas. Como não há restaurantes abertos para almoçar, reforça-se nos pequenos almoços e nos jantares.
Depois do furacão, a especulação
Pude viajar pela cidade após ter sido convidada por um voluntário com carro a partilhar uma casa no distrito de Uptown. Devido à ausência de sinalização nas ruas, enganámo-nos muitas vezes no caminho e fomos obrigados a explorar diferentes partes da cidade e a voltar para trás no percurso entre a clínica e a nossa casa de hospedagem.
O bairro onde ficámos foi inundado até uma altura de cerca de 60 cm, mas as casas eram sólidas e não sofreram prejuízos sérios na sua estrutura. As pilhas de lixo nestas ruas eram um sinal de que as pessoas estavam a voltar a casa e a proceder à limpeza. Viajámos por outra zona igualmente com casa sólidas que foram inundadas até uma altura de cerca de 1.3 m. Continua a ser uma cidade fantasma sem electricidade, sem água e sem pessoas.
A 10 de Dezembro, cerca de 1500 pessoas manifestaram-se na baixa de cidade exigindo justiça para os sobreviventes do furacão, incluindo o direito a voltar à sua cidade e a ter uma palavra a dizer sobre todas as decisões respeitantes à reconstrução. Organizada pela Peoples Hurricane Relief Fund e pela Oversight Coalition, a manifestação exigiu casas, assistência médica, anulação de dívidas, reagrupamento familiar e responsabilização pelos milhares de milhões de dólares levantados em nome dos desalojados.
Nada do que tenhamos visto pode preparar-nos para a devastação de Lower Ninth Ward, uma das mais pobres e das mais degradadas áreas de Nova Orleães. A água veios dos diques com tanta força que um enorme cargueiro foi levantado e depositado em terra a cerca de 100 metros.
Fotógrafos e repórteres de televisão captaram imensas imagens, mas são retratos abstractos. Estar rodeado por todos os lados de entulho, casas em ruínas com o seu recheio por terra, pelo completo silêncio e pela ausência de qualquer outro ser humano, animal ou simples pássaros é chocante. Toda a gente que lá vai diz o mesmo: «Nunca vi nada assim».
Aqui um telhado roça no chão. Além não há vestígios da casa que lá estava. Árvores desenraizadas e carros parados em posições estranhas ao longo das casas destruídas. Um urso de peluche pendurado no braço de um sofá. Uma ventoinha pende do tecto de uma casa em ruínas. Uma sólida casa de dois andares intacta no meio dos destroços da vizinhança. Ali um buraco irregular no telhado do sótão, onde os moradores abriram caminho para fugir quando as águas chegaram.
Algumas histórias
Uma doente contou-me como teve de enfrentar a burocracia para conseguir um atrelado da FEMA quando ficou sem casa. Após muitos atrasos a sua petição foi finalmente aprovada. Mas quando pediu que o atrelado fosse instalado num terreno pertencente a um familiar em Algiers, disseram-lhe que apenas podia ficar na zona onde estava a viver provisoriamente. O local não tinha electricidade, água, nem outros serviços, mas foi o único local onde a FEMA instalou o atrelado. Esta política aparentemente irracional tem um objectivo: ‘limpar’ as partes mais importantes da cidade empurrando as famílias deslocadas para os bairros pobres, maioritariamente afro-americanos.
Um empresário branco de sucesso contou como enfrentou a tempestade no segundo andar da sua casa quando o primeiro piso ficou alagado. Mais tarde saiu no seu barco e resgatou muitos idosos que tinham ficado encurralados pela água. Após ter esperado em vão pelos helicópteros para levar as pessoas para terra, levou-as para sua casa. Tendo visto o completo falhanço do governo e dos organismos públicos na assistência às necessidades básicas da população afectada, passou de apoiante de George W. Bush a opositor das políticas do presidente.
Um médico do hospital local que reabriu parcialmente disse-me que a maioria dos clínicos e enfermeiras tinha voltado. Mas continua a haver uma desesperante falta de pessoal de enfermagem, de limpeza e de cozinha. Estes são os trabalhadores invisíveis até que o lixo se acumula e as camas ficam por fazer.
As pessoas agradecem-nos por virmos a Nova Orleães ajudar. Para mim foi um privilégio ser capaz de usar a minha experiência como parteira e trabalhadora dos cuidados de saúde num lugar e numa altura em que eram necessários.