O cheiro do frio

Francisco Mota
Para:
A Marília, o Maximino e à sua firme e bela dignidade
Chaves

Há sempre uma última curva na estrada e depois dela, lá aparece na sua esperada beleza a nossa terra. A alegria é lógica porque a distância faz duvidar, como no amor, de que ela ainda nos espera. Nesta altura do ano, milhares de migrantes e emigrantes, voltam aparentemente para ver a família, mas realmente vêm para comprovar, que ela, a nossa terra ainda nos espera.

Neste caso, depois da última curva antes de Vilela do Tâmega, os retornados, perante a visão da torre do Castelo imitam a versão da Banda do Rebordondo e berram mais do que cantam:

Oh! Chaves, linda cidade
pelo Tâmega beijada
Deixas sempre uma saudade,
Terra linda! Terra amada!
Cidade antiga deste nosso Portugal,
Com a tua Veiga infinda, de beleza sem igual,
A quem nós queremos tanto
Porque és tu: a nossa terra!!

Algum purista diria que o poeta se podia ter esforçado um pouco mais na declaração de amor à nossa terra. Mas o que é que isso interessa? É Natal, vão-se ver amigos, falar de tudo e sobre tudo de nada e sentir o cheiro da erva molhada e da água limpa. E vai-se beber e comer de acordo com códigos e receitas que sendo diferentes de casa para casa, já ninguém se lembra de como começaram.
Na casa dos Fernandes, família burguesa culta e esclarecida, casa de médicos há muitas gerações, o importante é o jantar de dia 26, com as perdizes que iam oferecendo ao Sr Doutor e que se guardavam para esta ocasião. Depenadas, chamuscadas e alouradas em banha, estofavam lentamente em cebola (uma por perdiz), alhos, toucinho, azeite, manteiga, um bom molho de salsa, vinho branco pouco ácido. Um pouco de louro, cominhos, malagueta, sal e um cacho de uvas. Tempo, atenção e paciência. Servem as perdizes com o molho triturado no passe-vite, sobre fatias de pão torrado. Ao lado, fartas travessas de verdura cozida.
No fim emitem-se opiniões e comparações com anos anteriores. Como se fosse possível comparar o sabor da perdiz do primeiro ano em que o jovem genro do Sr Dr. Fernandes se sentou à mesa, com o de hoje, em que o genro, trinta anos menos jovem, está quase a ser sogro.
Cada casa segue a sua linha teórica quase sempre baseada no bacalhau, no polvo e nas couves.
Depois de ver os amigos, criticar a Câmara Municipal por estar a estragar tudo, é altura de ter um encontro fundamental: a encomenda das alheiras, enchidos de porco, salpicões e presunto, que de volta à cidade, onde cada um vende a sua mais-valia nas condições menos más possíveis, fará reviver sabor, paisagem, vozes, e até este frio que envolve tudo.
Dá-se uma volta até Espanha, compram-se umas garrafas de vinho de Verin, que sempre foi terra de zurrapas, mas que desde há uns anos, com trabalho, estudo e ideias claras produzem, na região demarcada de Monterrey, vinhos de bela qualidade. Uns deles, Terras do Gargalo é propriedade do costureiro Roberto Verino, que apesar de famoso pelas vestimentas que fabrica em Verin e vende em Madrid e no mundo, usa o nome da sua terra (Verino) e não o seu verdadeiro e agora até faz vinho bom. Onde antes havia fome, agora vive-se razoavelmente. Terá este homem chegado à conclusão de que dar de beber à dor é o melhor? Como, aliás, já dizia a Mariquinhas.
Porque será que voltando ao Alto TÂmega só se encontram vinhos medíocres, e se algum é bonzinho – como o Encostas do Rabaçal, de Valpaços – o seu preço é excessivo? Será fatalidade? Ou já se está no reino dos chico-espertos? Tudo isto é triste, tudo isto existe, mas nem tudo isto é fado.
Perde-se o viandante pelas estradas do interior, atravessam-se aldeias que não vêm no mapa com ruas empedradas cobertas de lama. Das portas abertas das casas sai um cheiro a animais já que estes coabitam com os seus donos. Vivem no rés-do-chão e produzem carne, leite, estrume e calor para o vizinho de cima. Quando se fala com algum agricultor destas aldeias, nota-se um cheiro misto de pessoa e animal. No Verão não é muito agradável. Agora, com frio intenso, entende-se nesse cheiro como é possível ainda hoje resistir à dureza da vida aproveitando tudo: até o calor do companheiro de trabalho.

Era tão bom morar aqui

Chega mais uma tarde e o dia acaba. À hora do jantar produz-se uma peregrinação inevitável: ir ao Aprígio. A morada é simples: Trás-do-Calvário, 5400 – Chaves. Está lá desde 1930, mas nessa altura sem código postal. Como diz uma folha incluída na carta, em 1954 o Avô Aprígio «tirou o alvará de taberna» e em 1965 o seu filho António (o Sr Toninho) «tirou o alvará de restaurante». Está-se, portanto, numa casa devidamente «alvarizada». Recebeu obras aqui há uns anos e sem luxos tem tudo o que é preciso e até lhe sobram dois televisores.
Enchidos, presuntos, doces, compotas, tudo é feito pela família. Na lista podemos encontrar as vitelas e os cabritos assados, os bacalhaus fritos, as cabidelas, os ranchos e as feijoadas de feijoca, mas são coisas aparentemente mais simples que dão o prazer profundo daquilo que não existe noutro lado: como os milhos. Esta obra de arte da cozinha pobre faz-se com milho moído, mas não em farinha. Cozinham-se com refogado de azeite e cebola e seguem-se os passos da feitura de qualquer arroz, só que com o triplo da água porque demora mais tempo a cozer. Podem-se acrescentar espigos de couve ou grelos de nabo. A chegada à mesa das travessas fumegantes dos milhos e dos pratos com alheiras, sangueiras, linguiças, fatias de lombo e costelinhas, tudo de porco e tudo assado na brasa provoca momentos de ansiedade porque tudo se quer provar ao mesmo tempo e, depois momentos de medo porque se teme já não se conseguir comer mais.
Nesta casa, onde quase toda a gente se cumprimenta, vêm-se às vezes uns clientes jovens de diferentes tons de pele desde o branco até ao escurinho ou negro, falando pouco e em línguas estranhas, quase sempre de olhar triste e perdido. Voz amiga informou que são búlgaros, romenos, angolanos ou brasileiros, de sua profissão jogadores de futebol, sem possibilidades de ter a família com eles e com os salários em atraso como tantos outros trabalhadores destes país. Neste Aprígio, encontram um porto de abrigo, esperando uma solução, um emigrante que volte rico, ou um presidente da Câmara a cumprir promessas eleitorais. O Sr Toninho faz de conta que não convida, mas convida.
Nem todos neste mundo do pontapé na bola são Figos e Ruis Costas, Ronaldos e Ronaldinhos. Há muita esperança morta e poucos Aprígios vivos.
Sai-se de Trás-do-Calvário, passa-se em frente do Calvário, casaco bem apertado, cachecol bem enrolado e caminha-se pelas ruas desertas e o ar gelado. Mete-se este ar frio pelo nariz e cheira bem, sabe bem. Munidos de um copo de vidro grosso, várias pessoas vindas de direcções diferentes dirigem-se silenciosa e estranhamente para a pequena cova de granito donde sai fumegante e permanente uma água bastante quente: são as águas das Caldas. Cada um enche o copo, espera uns momentos para que baixe a temperatura e bebe. Remédio santo: álcool mau, gordura boa, excessos de Natal, desgostos do Ano Velho, tudo, mas tudo, volta ao bom caminho. Digestões suaves, vapores etílicos desaparecidos, ideias claras e sensatas.
Viva a água das Caldas!
Mas numa manhã próxima, talvez já no dia seguinte, o Nestor tem que voltar a Toulouse, o Luís a Palmela, o Mário ao Algarve, o Zé Carlos ao Maputo e este ao Canadá e aquele ao Brasil. E todos, todos se vão.
Todos não! Fica gente que luta por uma vida melhor para estas terras de Chaves, de Bragança, de Mirandela, da Guarda, e de tantos sítios deste interior cada dia mais deserto e abandonado. Fica gente que espera que de novo estas terras sejam cultivadas, que estas florestas não ardam no Verão, que estes sabores não sejam todos destruídos pelas directivas que vêm de Bruxelas.
Fica gente como vocês Marília, Maximino, e tantos outros que palmo a palmo, luta a luta, verso a verso, farão diariamente o caminho que outros irão seguir. Até que uma pessoa, qualquer pessoa, não seja empurrada da sua terra para buscar uma vida digna no Porto, Lisboa, Frankfurt, Toronto ou São Paulo.
Como disse aquele menino com o peito cheio de ar frio e puro, entalado no banco traseiro de um Peugeot caminho de França: Era tão bom morar aqui e ir de férias a Paris de vez em quando, não era mãe?


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